Em dias de Covid-19, os velhos quebra-cabeças voltam à cena doméstica
O jogo tem potencial para socialização, concentração e ordenação do caos
A esta altura do surto planetário de Covid-19, ninguém duvida que a internet seja a maior aliada no enfrentamento da incontornável quarentena — condição na qual se encontra metade da população do globo. Isso não só em razão das diversas ferramentas que permitem ver e ouvir familiares e amigos, trabalhar e estudar em casa. Com a web, os duríssimos dias de confinamento a que todos estamos submetidos têm ficado mais brandos graças às infinitas formas de entretenimento que estão disponíveis on-line — entre as quais os videogames, pela própria natureza digital, ganham um crescente destaque. Curiosamente, no entanto, um jogo antiquíssimo, analógico, off-line, está voltando ao centro da cena das diversões domésticas: o quebra-cabeça.
O salto na comercialização do passatempo vem sendo extraordinário. A americana Puzzle Warehouse, situada entre as maiores empresas de quebra-cabeças do mundo, teve uma explosão de vendas nos EUA: aumento de dez vezes nas compras pelo site após o começo da doença. Também por lá, o gigante Ravensburger, empresa alemã especializada em jogos, anunciou que o comércio de quebra-cabeças por meio de sua loja virtual cresceu 370% ao longo das últimas duas semanas. No Brasil não tem sido diferente. Desde o dia 20 do mês passado, quando interrompeu provisoriamente o atendimento presencial em suas unidades físicas, o grupo Ri Happy, marca pioneira no país no comércio de brinquedos via internet, aumentou em três vezes suas vendas dos jogos com mais de 1 000 peças, que custam algo em torno de 50 reais, através do site.
Uma pergunta intrigante — ou, com o perdão da brincadeira, de quebrar a cabeça: por que o velho jogo de montar estaria mobilizando tanto os recolhidos de hoje em dia? “O quebra-cabeça é uma atividade que se realiza em espaços interiorizados, como a casa, podendo ser socializado. Por causa da pandemia, temos passado muito tempo em ambientes propícios para atividades assim, e que exigem concentração”, afirma o psicanalista Daniel Kupermann, professor de psicologia clínica da USP. “Ademais, o jogo é lúdico — tira a atenção do que nos tem trazido sofrimento.” Quem brinca sabe o que sente. “Está sendo uma terapia. Fico longe do celular e me acalmo. Já encomendei outro”, diz a influenciadora digital Gabriela Pugliesi, que contraiu o novo coronavírus em março e teve de ficar isolada. Gabriela postou recentemente no Instagram uma imagem em que aparece montando um quebra-cabeça. O mesmo também já fizeram o ator inglês Tom Holland e a apresentadora americana Ellen DeGeneres.
Os quebra-cabeças começaram a ser vendidos na Inglaterra dos anos 1760. Quase dois séculos mais tarde, em 1933, com o mundo mergulhado na Grande Depressão, o hobby experimentou uma espetacular comercialização: 10 milhões de jogos eram produzidos semanalmente. Seria esse um mau presságio? “Montar um quebra-cabeça dá à pessoa uma chance de ordenar o caos, fornecendo-lhe uma gratificação muito importante durante um período tão confuso”, resume Anne Williams, professora de economia da Bates College (EUA) e pesquisadora da história desse jogo. Que a ordenação do caos não se restrinja às peças lúdicas dos quebra-cabeças.
Publicado em VEJA de 22 de abril de 2020, edição nº 2683