Ao se despir da obrigação de dar a suas telas as cores da natureza a sua volta, o francês Paul Gauguin (1848-1903) distanciou-se do impressionismo então em voga e fincou os pés no simbolismo, influenciando toda uma geração de artistas. Seu legado para a arte é inequívoco, mas o pintor, também lembrado pela doentia relação com o gênio Van Gogh, anda no meio de uma acalorada polêmica que, se dependesse dos críticos mais radicais, culminaria na exclusão de sua obra dos museus. A questão gira em torno justamente dos quadros pelos quais Gauguin é mais conhecido, produzidos em seus últimos anos de vida no Taiti, uma coleção que deixa entrever uma página obscura de sua biografia. Um deles, Merahi Metua no Tehamana (Os Ancestrais de Tehamana, em tradução livre) — destaque na exibição Gauguin Portraits, até 26 de janeiro na National Gallery de Londres — ilustra o cerne do problema: a adolescente de 13 anos estampada ali foi uma das várias com quem ele se relacionou (e até morou) no período da Polinésia Francesa. Algumas engravidaram.A exposição londrina provoca o visitante com uma reflexão válida para tantas outras relevantes figuras que a certa altura macularam sua trajetória: seria o caso de deletar (ou cancelar, o termo da vez) Gauguin? Envolto em paixões, crenças e argumentos filosóficos, o debate sobre como tratar o passado escuso de figuras admiradas não nasceu hoje — o mestre barroco Caravaggio (1571-1610), autor de um assassinato; o compositor alemão notoriamente antissemita Richard Wagner (1813-1883); e o pintor expressionista austríaco Egon Schiele (1890-1918), acusado de pedofilia, já foram alvo de contenda semelhante. A discussão vem sendo revigorada sob as lentes do século XXI, implacáveis com quem professa a cartilha politicamente incorreta. “Não é mais suficiente dizer que as coisas funcionavam de outro jeito antes”, diz Christopher Riopelle, curador da mostra de Gauguin, que teve o cuidado de apresentá-lo como alguém que “sem dúvida usou de sua posição de ocidental privilegiado para tirar proveito das oportunidades sexuais que lhe surgiram”.Ao manter Gauguin mas expor suas contradições, a National Gallery envereda por uma linha sobre a qual há relativo consenso: a biografia do artista deve ser uma página aberta e cabe a cada um julgar se quer lhe dedicar atenção. “Nada impede que um homem seja canalha e gênio ao mesmo tempo. Muitos grandes artistas produziram suas obras como um reflexo de demônios interiores”, pondera o escritor e crítico Martim Vasques da Cunha. Para complicar a conversa, especialistas lembram que os defensores de boicote de tal natureza não estão considerando que Gauguin inspirou Picasso (outro sempre na degola do politicamente correto), que influenciou Dalí, cujas pinceladas surrealistas são cultuadas por aspirantes a pintor mundo afora. “Uma vez que o artista cria algo, sua obra passa a pertencer ao mundo, e não mais a ele”, observa o espanhol Vicente Todolí, ex-diretor da Tate Modern, templo da arte moderna às margens do Tâmisa.Bem antes de a polêmica Gauguin sacudir o mundo das artes, o campo dos pensadores já havia tremido com a revelação de que o filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976), um dos mais influentes do século XX, não só cultivava claro pendor antissemita como seguiu em silêncio ultrajante depois da II Guerra, mesmo após os crimes perpetrados pelo nazismo. Suas anotações nos Cadernos Negros, publicados em 2014, situam o judaísmo no mesmo balaio do liberalismo e do capitalismo, que ele tanto desprezava. Aí os analistas detectam uma diferença crucial em relação aos casos de Gauguin e Schiele, separando-os de Heidegger na eterna discussão sobre a fronteira entre a vida e a obra do artista: fazer do preconceito matéria de filosofia tem um potencial de estrago que os desvios de conduta dos outros não trazem. “Uma das principais lições do trágico século XX é: cuidado com os intelectuais. Eles devem ser vistos com especial desconfiança quando buscam oferecer aconselhamento coletivo”, escreveu o historiador inglês Paul Johnson.Uma solução encontrada para tentar harmonizar o olhar do passado com a cultura presente, sem desfigurar o original, é realizar um ajuste aqui, outro ali. Foi o que ocorreu no Brasil com Monteiro Lobato, adaptado pelo roteirista Walcyr Carrasco, colunista de VEJA, que eliminou dos livros termos de cunho racista — Tia Nastácia era uma “macaca de carvão” —, inaceitáveis nos dias de hoje graças a avanços civilizatórios inquestionáveis. “Retirei expressões em uso na época de Lobato que podem ser consideradas racistas, fiz uma adaptação do genial autor para as crianças dos novos tempos”, diz Carrasco. No final, é a estatura da obra que define sua permanência. “Se ela é capaz de conversar com milhões de pessoas de várias gerações, é porque sua mensagem diz respeito à natureza humana, com todas as suas misérias”, lembra Vasques da Cunha. A propósito, a National Gallery anda arrastando multidões à mostra de Gauguin.Publicado em VEJA de 22 de janeiro de 2020, edição nº 2670