No romance ‘O Avesso da Pele’, Jeferson Tenório fala de racismo e família
Com o título autobiográfico, o autor brasileiro mescla o desabafo de quem enfrenta o preconceito a uma investigação corajosa da figura paterna
Entrar em uma faculdade não estava nos planos de Jeferson Tenório. Até o dia em que, ao voltar de madrugada da pizzaria onde trabalhava, aos 18 anos, em Porto Alegre, foi abordado pela polícia de forma violenta. Não era a primeira vez que o jovem carioca criado no sul do país passava pela experiência — nem seria a última. Aos olhos do bairro de classe média por onde transitava, a cor de sua pele o rotulava como “suspeito”. Esse choque de realidade veio na forma de alerta feito por sua mãe para deixá-lo menos suscetível a situações como aquela. Tenório entrou no curso de letras de uma faculdade particular. Ali, um novo mundo se abriu. “Percebi como estava defasado. Meus colegas falavam de Shakespeare, Homero… E eu não tinha ideia de quem eram. Comecei a comprar livros de forma obsessiva”, conta. O gosto custou caro. “Comprei tantas obras que não conseguia mais pagar a faculdade.” A descoberta dessa paixão mudou sua vida: ele fechou a matrícula e estudou para passar em uma universidade pública e gratuita. Hoje, aos 43 anos, é professor de literatura e feliz proprietário de uma biblioteca de 5 000 títulos.
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A educação e a bem-sucedida trajetória profissional não o tornaram imune ao preconceito. Em 2016, Tenório aguardava uma carona para o trabalho quando uma viatura o parou no mesmo bairro de classe média daquela pizzaria, onde agora ele reside. “Os policiais foram educados, pediram meus documentos e disseram que haviam recebido uma denúncia sobre um homem suspeito parado na rua”, conta. A humilhação acionou um gatilho, descarregado por ele na premissa: “E se eu reagisse a essa injustiça?”. A resposta, que poderia pender para um ríspido desabafo, se transformou no elegante O Avesso da Pele, seu terceiro e mais ousado romance.
O racismo tem lugar menor na trama, se comparado à amplitude da família que protagoniza o livro — um tanto inspirada na sua de fato. Do Rio a Porto Alegre, os personagens do clã amadurecem à luz de dilemas cotidianos e romances complicados. O autor navega de forma poética por ramificações que em diferentes pontos tocam a vida de Henrique, um professor de escola pública que sofre de ansiedade e teme não ser uma figura paterna presente, já que ele próprio foi abandonado pelo pai. O medo se concretiza com a morte prematura do genitor, vítima de truculência policial. Cabe a seu filho, Pedro, narrar a história do pai para além da cor da pele. Henrique e Pedro formam um duo que reflete experiências de Tenório — o escritor tem um filho de 10 anos e foi abandonado pelo pai na infância. Na vida real, a trama é menos trágica que a do livro: o autor retomou o contato com o pai e descobriu ter duas irmãs.
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A investigação afetiva da figura paterna é fruto não só de um anseio pessoal, mas das incansáveis leituras de Tenório. Imerso na literatura contemporânea luso-africana — recorte de seu doutorado —, Tenório perscruta a representação do pai vinda dos autores de países como Moçambique e Angola, que foge do tipo opressor da visão ocidental. “A pesquisa me revelou um pai coletivo, horizontal. Imprimi esse conceito no livro.” Para fugir à tentação de transformar a obra em uma autobiografia, o autor se divide em três vozes narrativas, cuidadosamente entrelaçadas. A mais interessante e proeminente é a segunda pessoa, usada por Pedro para falar diretamente ao pai com o pronome você. A escolha empática convoca o leitor ao lugar do personagem, sofrendo com ele as dificuldades de amores fracassados, e comemorando as pequenas vitórias em sala de aula com alunos dispersos da periferia. Tenório, que teve o primeiro romance, O Beijo na Parede, de 2013, distribuído em escolas públicas, mostra aqui um taco certeiro para tramas adultas e profundas. Uma voz talentosa e urgente da nova ficção nacional.
Publicado em VEJA de 12 de agosto de 2020, edição nº 2699
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