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‘Aqui não entra vivo nem morto’

A peripécia de José Rodríguez para enterrar seu filho na Venezuela em tempos de fronteira fechada

por Por Yan Boechat, de Cúcuta, na Colômbia

José Duarte Rodríguez preferiu não ver o caixão com o corpo do filho cruzar a fronteira da Colômbia com a Venezuela pela pequena vereda de terra batida usada por contrabandistas de gasolina. Antes de o corpo deixar o necrotério de Cúcuta, na Colômbia, José seguiu para a cidade venezuelana de San António por uma das dezenas de passagens irregulares que ligam os dois países nesses tempos de fronteira fechada, as “trochas”. Optou por uma bastante movimentada, perto da Ponte Simon Bolívar.

Por ali, cerca de 45.000 venezuelanos cruzavam a divisa todos os dias antes da crise diplomática entre os dois países, desencadeada no último sábado. Naquele dia, a oposição venezuelana, com o apoio do presidente colombiano, Ivan Duque, tentou forçar a passagem de mais de 600 toneladas de comida, remédios e itens de primeira necessidade enviados pelos Estados Unidos como meio de ampliar a pressão política sobre o presidente venezuelano, Nicolás Maduro. A tentativa fracassou diante do forte esquema militar de bloqueio da fronteira.

Rodríguez, um colombiano de nascimento que imigrou para a Venezuela nos tempos duros da guerrilha, lá pelos anos 1980, estava esgotado no final da manhã da quinta-feira. Passara dois dias em tentativas frustradas de conseguir autorização dos militares venezuelanos para cruzar a ponte com o corpo do filho.

“Não vão me deixar. Um guarda me disse que Caracas mandou avisar que pela ponte não passa ninguém, nem morto, nem vivo”.

Diante do drama de Rodríguez, um homem perto dos 60 anos, baixinho e troncudo como tantos indígenas que vivem por essa parte da Colômbia, o diretor da Defesa Civil de Cúcuta, Miguel Pérez, tentou intervir. Cruzou a linha imaginária que divide os dois países, passou pelos contêineres usados pelos soldados venezuelanos para bloquear a passagem na ponte e chegou até os guardas. Tudo em vão.

“Disseram que não vão deixar passar ninguém daqui para lá e ninguém de lá para cá, mesmo que estejam doentes ou mortos”, contava Pérez na tarde de quarta-feira 27.

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Dias antes, Luís Rodríguez, de 36 anos, pai de uma menina de 8 e garimpeiro de ouro como toda a família, pedira ao pai que, se não sobrevivesse, gostaria de ser enterrado onde nascera, na cidade fronteiriça de Ureña.  “Carrego no meu coração o dever de fazer isso por ele”, contou José Rodriguez em frente ao necrotério onde o corpo do filho estava guardado.

Luís havia chegado do Estado de Bolívar, perto da fronteira com o Brasil, duas semanas antes. A febre alta, a dor de cabeça e uma insistente dor no abdome o faziam acreditar que estava com malária, doença endêmica na região de garimpo e que se espalhou por toda a Venezuela nesses tempos de crise. Só em 2018, estima a Sociedade Venezuelana de Saúde, mais de um milhão de casos foram registrados na Venezuela.

Assim como quase tudo em seu país, faltava remédio para aliviar os efeitos da malária. Na região conhecida como Arco Mineiro, onde dezenas de milhares de venezuelanos têm se embrenhado na mata para extrair ouro de forma quase artesanal, só se consegue remédios para o paludismo com os traficantes de medicamentos, que chegam a cobrar quatro gramas de ouro pelas 14 pílulas para o tratamento inicial.

Luís decidiu voltar para casa e, de lá, buscar assistência no país vizinho. Por três dias, viajou de Bolívar, estado na fronteira com o Brasil, para Táchira, na divisa com a Colômbia.

“Ele chegou muito debilitado, mas conseguimos trazê-lo para Cúcuta”, conta o pai.

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Já no hospital, Luís e José foram surpreendidos com o diagnóstico. O rapaz não tinha malária, mas sim um câncer extremamente agressivo no pâncreas. A morte chegou rápido. Mais veloz do que José e sua família tinha planejado para conseguir pagar o tratamento do filho.

“Não vou permitir que o enterrem aqui nem que o queimem. Vou levá-lo para a Venezuela de qualquer forma”, dizia ele, ainda na manhã de quinta-feira 28, quando negociava com os contrabandistas de gasolina o preço de levarem o corpo do filho por uma “trocha”.

Os traficantes queriam 500 mil pesos colombianos, o equivalente a pouco mais de 610 reais. Com a ajuda de agentes funerários, de colegas e de parentes, Luís conseguiu arrecadar 350 mil pesos. Na conversa, conseguiu convencer os contrabandistas com sua história. Negócio fechado.

O corpo seguiu por uma trilha de terra cortada por riachos e margeada por plantações de arroz e pasto para gado. Os “colectivos”, milícias civis que defendem o regime de Maduro e que, nesses dias guardavam a fronteira, ainda surgiram como obstáculo no meio do caminho de terra batida com a ameaça de apreender o caixão.

Ao final, José conseguiu realizar o último desejo do filho, que repousa agora em um cemitério simples da venezuelana Ureña.

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Pelas 'trochas' é possível passar tudo

Estudantes venezuelanos, que antes cruzavam as pontes para ir às escolas da Colômbia, só têm as trilhas do contrabando como acesso desde que a fronteira foi fechada pelo regime de Maduro – 28/02/2019
Estudantes venezuelanos, que antes cruzavam as pontes para ir às escolas da Colômbia, só têm as trilhas do contrabando como acesso desde que a fronteira foi fechada pelo regime de Maduro – 28/02/2019 (Yan Boechat/VEJA.com)

Poucas histórias serão tão tristes e impactantes como a de José e seu filho Luís nesta faixa onde a Colômbia se encontra com a Venezuela. Mas, em diferentes graus, centenas de milhares de pessoas que vivem entre os dois países estão sofrendo de forma profunda com a decisão de Caracas em manter as pontes que ligam lado a lado fechadas.

Na quarta-feira o governo colombiano decidiu reabrir sua fronteira. A Venezuela, no entanto, diz ter se sentido atacada com a tentativa forçada da entrada do comboio de alimentos e remédios enviado pelos Estados Unidos. Nem sequer impôs prazo para autorizar a entrada legal em seu território pelas pontes internacionais.

“É uma situação dramática porque centenas de crianças que vivem na Venezuela estudam aqui. E muitos, muitos doentes, doentes graves, que precisam fazer hemodiálise e só encontram tratamento nas organizações internacionais deste lado não podem cruzar a fronteira de forma segura”, diz o diretor da Defesa Civil de Cúcuta, Miguel Pérez. “Todos os pedidos que fizemos para a abertura de um corredor humanitário a em uma das três pontes, pelo menos, foi negado”.

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O fechamento das pontes, como mostra o contrabando do corpo do garimpeiro Luís Rodríguez, não é exatamente um impedimento para os venezuelanos entrarem e saírem de seu país. Pelas “trochas” é possível passar tudo e todos, até mesmo um cadáver. O problema para venezuelanos, no entanto, não está nos riscos da travessia ilegal, nas pedras escorregadias do Rio Táchira nem na caminhada pelas trilhas em meio à mata.

“Paga-se para tudo. Aqui precisamos pagar para os ‘trocheros’, que têm contato com os soldados e com os ‘colectivos’. Os ‘trocheros’ dividem o que ganham com eles, e ai conseguimos passar com alguma segurança”, conta Naomi Sarasti, uma advogada de 36 anos que vive na distante cidade de Puerto de La Cruz, no estado venezuelano de Anzoátegui.

Naomi levou 16 horas para vir a Cúcuta comprar comida, pneus, remédios e tudo mais que pudesse encontrar para revender na Venezuela. “Como advogada não há mais trabalho, e o salário mínimo mal chega a seis dólares”, diz ela, que retornou recentemente de uma temporada de ano e meio no Peru. “Lá, somos explorados demais. Fazem-nos fazem trabalhar 12 horas, até 14 horas por dia, e nos pagam apenas meio salário mínimo.”

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Naomi contratou três “trocheros” para ajudá-la a carregar as malas e os pneus e também, claro, para protegê-la dos “colectivos” que continuam atentos do outro lado da fronteira. Apesar do custo extra, de 15 mil pesos venezuelanos, ela consegue reduzir o risco de não ter sua carga roubada ou de ser presa.

“Há perigo. Ai amigo, parece simples, mas não é”, diz Jorge, um dos “trocheros” que acompanhavam Naomi, justificando o valor de seu trabalho.

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Os que ficam em abandono

Venezuelanos cruzam o Rio Táchira, na trilha ilegal na fronteira com a Colômbia, para buscar o que for possível carregar de volta para seu país – 28/02/2019
Venezuelanos cruzam o Rio Táchira, na trilha ilegal na fronteira com a Colômbia, para buscar o que for possível carregar de volta para seu país – 28/02/2019 (Yan Boechat/VEJA.com)

O partido venezuelano Voluntad Popular, de Juan Guaidó, denunciou que ao menos quatro pessoas foram sequestradas nas “trochas” nesta semana. Na segunda-feira 25, um casal de jornalistas que estava em Cúcuta cobrindo a tentativa frustada de entrada da ajuda humanitária também foi detido. Ambos foram liberados após quatro horas, mas ficaram sem seus equipamentos.

Quase uma semana após a partida do autoproclamado presidente interino da Venezuela, Juan Guaidó, e dos deputados da Assembléia Nacional que organizaram a tentativa de entrada do comboio, centenas de venezuelanos continuam sem Cúcuta sem poder retornar à Venezuela. Eles temem serem detidos ou roubados pelos “colectivos” e militares que patrulham as “trochas”.

Lorena Bronacelly, uma jornalista de Mérida, na Venezuela, continua na cidade colombiana sem exatamente saber o que fazer. Está grávida e não tem dinheiro para ir até Bogotá, onde tomaria uma voo para Caracas.

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“Não tenho coragem de cruzar pela ‘trocha’ e sei que posso perder todo meu equipamento. Ao menos, meu jornal está pagando o hotel e nos dá o que comer”, diz ela, acompanhada por três colegas.

O fechamento da fronteira não impactou apenas aqueles de passagem pela Colômbia. Estima-se que mais de 100 mil venezuelanos vivam em Cúcuta. Muitos deles sobreviviam vendendo produtos ou serviços aos compatriotas que cruzavam a ponte Simon Bolívar todos os dias. Com a passagem fechada e o número menor de pessoas a chegar, estão quase todos sem trabalho. E sem dinheiro.

“Eu vendia água na beira da ponte, mas agora não tenho nada. Nossa sorte é que estão distribuindo comida no fim do dia e no almoço”, conta Yasmelli Calderón, uma jovem de 21 anos, mãe de três filhas.

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Duas de suas meninas ficaram na cidade de Valência, com a avó. Com ela está Michele, de apenas nove meses. A criança passava quase 12 horas por dia em um carrinho de bebê observando a mãe a oferecer água aos venezuelanos que chegam e se vão da Colômbia.

Nestes tempos de fronteira fechada, Yasmelli tem passado os dias sob a sombra das mangueiras que servem como refúgio do sol forte que castiga essa parte da fronteira.

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