Fernanda Montenegro reage a ameaças: ‘Não vou me calar’
Figura de frente do movimento que procura brecar a Caça às Bruxas na cultura deflagrada em 2017, a atriz fala dos ataques que recebeu pela internet, defende que as pessoas se posicionem e propõe a desapropriação dos terrenos em volta do Teatro Oficina, hoje nas mãos de Silvio Santos
“Desde que me entendo por gente, nós entramos em cena antes da própria cena, compreende?” Fernanda Montenegro parece estar falando daquele momento mesmo. Coberta por tons terrosos, a única brasileira a conquistar um Emmy Internacional e uma indicação ao Oscar de Melhor Atriz, em 1999 por Central do Brasil, além de incontáveis prêmios teatrais, se imiscui aos tijolos que servem de pano de fundo para o palco onde ensaia para a apresentação de A Glória e Seu Cortejo de Horrores. Editado pela Companhia das Letras, o segundo romance da filha, Fernanda Torres, vai ganhar uma leitura dramática no Teatro Oficina em menos de três horas. A fala de Fernanda, no entanto, não tem qualquer caráter cenográfico. A atriz de 88 anos, 72 deles de carreira, se refere à posição que tomou em meio ao Caça às Bruxas detonado por conservadores contra as artes, desde que, em 10 de setembro, o Santander Cultural tirou de cartaz em Porto Alegre a exposição Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, acusada por grupos como o Movimento Brasil Livre (MBL) de incitar crimes como a pedofilia e a zoofilia.
Cerca de um mês do cancelamento da mostra, da censura em Jundiaí a uma peça com uma versão transexual de Jesus e de ataques a uma performance com um artista nu depois, Fernanda Montenegro gravou um vídeo de um minuto e meio para o movimento #342Artes, de defesa da liberdade artística, em que conclama um desacovardamento dos políticos em prol da cultura. “Saiam desse silêncio acovardado”, diz no vídeo. “O que nós necessitamos é de cultura com educação e liberdade. Não existe nação sem liberdade.” Dias antes, ela havia se manifestado em seu perfil no Facebook com uma frase curta, mas afiada: “Meu protesto a respeito de qualquer censura à expressão da arte no Brasil”. Foi o que bastou para se converter em alvo de palavrões, impropérios e ameaças de morte.
Apesar de “assustada”, Fernanda diz que não vai recuar. “A gente fala, espero que resulte em algo. Espero também que parem de me ameaçar. Mas, se continuarem, não vou me calar”, diz. A equipe da atriz acionou o Facebook e obteve como única resposta a orientação para bloquear, no próprio site, os autores de comentários indesejáveis. “Você fica assustada com a violência das mensagens, porque ter contrários, tudo bem, faz parte, mas, quando chega a essa ameaça criminosa, deveria ter uma resposta até da Justiça. Não se pode ficar anunciando pela internet que vai matar alguém. Só quando matar de fato é que a Justiça vai se manifestar? A Justiça, sem pleonasmo, precisa se justificar.”
Recuar está fora de cogitação para a atriz que está na vida pública desde os 16, quando estreou no rádio, e no teatro desde os 21 anos, quando entrou para o elenco de Alegres Canções nas Montanhas, de Julian Luchaíre, montagem dirigida por Ester Leão em 1950. Foi nessa primeira peça que ela conheceu o futuro sócio e marido, Fernando Torres, morto em 2008 aos 81 anos. Com Torres, ela fundaria uma companhia, a Teatro dos Sete, e uma família, da qual fazem parte Fernanda Torres, a Fernandinha, e Claudio Torres, diretor de filmes como O Homem do Futuro e Redentor.
Na minha cidade, as pessoas vão à praia peladas, compreende? Se a gente não enfrenta o corpo humano, então não pode mais abrir as pernas para ter filhos, porque alguém vai ver as suas entranhas peludas ou raspadas
“Eu sempre quis ser mãe. E tenho muito orgulho dos meus dois filhos, criados com todas as dificuldades de uma família de teatro”, diria Fernanda, emocionada e cercada de fãs e de amigos atores ao fim da leitura dramática de A Glória e Seu Cortejo de Horrores, título que replica uma das frases mais ditas por ela. Em entrevista ao ex-marido Pedro Bial, Fernandinha contou que a sentença é como um mantra na família. “Minha mãe vive dizendo isso. Quando ela concorreu ao Oscar, teve de viajar os Estados Unidos de ponta a ponta para divulgar o filme. No fim de tudo, estava com a mandíbula travada de tensão. É a glória e o seu cortejo de horrores.”
O romance é dedicado por Fernandinha, que tem uma relação de amizade profunda com a mãe, “Para Arlette e Fernanda / A quem devo a vida / a coxia / e o título deste livro”. Nascida Arlette Pinheiro Esteves da Silva em 16 de outubro de 1929, no Rio de Janeiro, Fernandona passou a se chamar Arlette Pinheiro Monteiro Torres ao se casar com o ator e diretor Fernando Torres, em 1953, mas se tornaria conhecida mesmo como Fernanda Montenegro, nome artístico adotado ainda no rádio, onde, com menos de 20 anos de idade, fazia traduções e adaptações de peças literárias para o formato de radionovelas. O nome Fernanda, que daria também à filha, foi eleito ainda na adolescência por ter uma sonoridade semelhante à dos personagens de Balzac ou Proust. Montenegro foi um sobrenome emprestado de um homeopata que ela não chegou a conhecer, mas que era amigo da família e apontado como milagroso.
O Brasil é aquele país onde as profundas necessidades nunca têm dinheiro. Como dizer que não há dinheiro em São Paulo para oferecer um parque ao cidadão? Para preservar um espaço como o Teatro Oficina, um espaço da cultura brasileira, da história do Brasil?
A menção de Fernandona, como é chamada para se diferenciar da filha, às “dificuldades de uma família de teatro” não é gratuita nem tem por objetivo agradar aos que estão no Oficina para acompanhar a leitura do livro feita por ela, Fernandinha, Antonio Fagundes e José Celso Martinez Corrêa. Ou para prestar seu apoio ao diretor, que se encontra em novo embate com o empresário Silvio Santos. É mesmo com o palco que Fernanda, ainda que some trinta programas de TV entre novelas, minisséries e especiais, e mais de quinze filmes no currículo, como A Falecida (1964) e Eles Não Usam Black Tie (1980), mais se identifica. Afinal, foi onde se formou. Ali, se consagrou como Lucília em A Moratória, de Jorge Andrade, que lhe rendeu o Prêmio Saci e o estrelato, entre cerca de setenta espetáculos.
Essa identidade ajuda a explicar a sua verve política. “O teatro é um espaço opinativo, é físico e é do tamanho do ser humano, que é incomensurável”, diz, uma voz que fica grave nos assuntos mais sérios. “O pessoal do teatro, pela vida afora, na história de qualquer país, sempre tem uma posição carnificada. Ou a gente fala com as próprias palavras ou usando palavras de outros, como Shakespeare. Está no Lear: ‘Em tempos de crise, os cegos seguem os loucos’. Esse é o momento que a gente está vivendo.”
Do ponto de vista moral, da moralidade, vivemos algo que eu nunca vi. Nunca houve nenhuma exposição que proibisse a entrada de visitantes com menos de 18 anos
É também esse momento, de recrudescimento do moralismo, de radicalização religiosa e de avanço de uma extrema direita pouco afeita ao diálogo, que para Fernanda exige um posicionamento. “É uma posição que todos nós, ligados à cultura, temos de tomar. Não é uma pessoa nem duas nem três. Não sei se viajamos no sonho, na esperança, mas é o que nos resta.”