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Depois do grito, é esperada uma era de sangue

Tudo o que não ocorreu em três séculos de letargia começa a mudar com o grito de Independência ou Morte de Dom Pedro

Por Da Redação Atualizado em 4 jun 2024, 12h20 - Publicado em 3 set 2022, 07h00

O texto a seguir faz parte da edição especial de VEJA em torno dos 200 anos da independência. A ideia é tratar as notícias como seriam publicadas naquela semana de 7 de setembro de 1822 – tudo o que viria a ocorrer depois, portanto, ainda não aconteceu. É um passeio histórico ao cotidiano de dois séculos atrás.

Parece que foi há 200 anos, mas passaram-se apenas seis dias desde que dom Pedro ergueu a voz às margens do barrento riacho do Ipiranga, na orgulhosa São Paulo, para declarar que o Brasil se tornava, finalmente, livre de Portugal. As palavras que já entraram para a história — “Independência ou morte”, gritou o príncipe, tomado de fúria — soaram por volta das 16h30 do sábado, dia 7 de setembro. Desde então, as engrenagens invisíveis que movem o tempo têm se acelerado. Dom Pedro retornou ao Rio de Janeiro numa marcha épica de cinco dias e lá prepara, segundo VEJA pôde apurar, os primeiros decretos do governo brasileiro, assim como medidas concretas para a defesa militar da nação. Elas envolvem o famoso almirante escocês Thomas Cochrane, que se encontra lutando no Chile e está sendo convidado a vir ao Brasil. Tudo o que não ocorreu em três séculos de letargia vai tendo lugar agora, num punhado de dias gloriosos. Da província Cisplatina ao Pará, 4,6 milhões de brasileiros de todas as origens voltam-se para o príncipe regente em busca de inspiração e liderança. Ao mesmo tempo, os olhos vasculham o mar, de onde podem surgir, a qualquer momento, navios trazendo tropas portuguesas, como as que desde fevereiro tentam submeter a província da Bahia. Vivem-se tempos de sangue, esperança e incerteza no Brasil.

Para aqueles que não seguem o dia a dia da política, os acontecimentos do 7 de setembro podem ter parecido inesperados e surpreendentes, mas não foram nem uma coisa nem outra. Desde 9 de janeiro, quando dom Pedro se recusou, altivamente, a obedecer à ordem das Cortes portuguesas de retornar a Lisboa, o que ficou conhecido como o Dia do Fico, as cartas da independência estavam postas sobre a mesa. Ficou claro, naquele momento, que o príncipe de 23 anos tomara posição contra aqueles que hoje controlam seu país natal. Ao fazê-lo, permitiu que se organizasse em torno dele o movimento de emancipação do Brasil. O reinado do país pequeno sobre o grande e do povo pobre sobre o rico começava a terminar.

As Cortes que emergiram da Revolução do Porto, de 1820, com o mandato de escrever uma nova Constituição para Portugal, têm tido papel de destaque no levante brasileiro. Ao tomar o comando do reino, reduziram dom João VI ao papel de soberano decorativo, enfraquecendo os laços que ligavam os brasileiros ao monarca e, por meio dele, a Lisboa. Dizem que, ao ler os jornais pela manhã, o velho rei comentou com amarga ironia: “Deixe-me ver o que eu decidi ontem”. Acostumados ao temperamento do pai, os constitucionalistas subestimaram a índole do filho. Eles tampouco entenderam as modificações profundas que os treze anos da presença de dom João no Rio de Janeiro causaram na mentalidade brasileira. Movidas por interesses comerciais mesquinhos, as Cortes querem fazer o relógio andar para trás. Seu plano principal é reconduzir o Brasil à inaceitável condição de colônia, com a retirada de todos os privilégios comerciais de que o país desfruta desde 1815, quando foi alçado à condição de sede do Reino Unido de Brasil, Portugal e Algarves. Se esse plano não vingar, tentarão mutilar o país, tomando as porções Norte e Nordeste do território. Daí o sangrento ataque à província da Bahia. Para alegria dos que levam no chapéu as fitas verde-amarelas do Brasil, o plano principal foi abortado pelo grito do príncipe — e o secundário, graça à bravura dos baianos, caminha para o desastre. A arrogância daqueles que pretendiam submeter os brasileiros a qualquer custo terminou por incitar a independência.

Neste momento, reúnem-se ao redor de dom Pedro e da princesa Leopoldina — a mais brasileira das austríacas (leia a entrevista de Páginas Amarelas) — as forças vivas do país. Estão engajados na luta pela independência desde maçons com ideias afrancesadas (radicais que pretendem substituir a monarquia por uma república caótica, como tantas que cercam o Brasil na América do Sul) até sábios como o ministro paulista José Bonifácio de Andrada (leia o perfil na pág. 32), que, do alto dos seus 59 anos, acalenta o projeto de transformar o Brasil na grande potência do Hemisfério Sul. Bonifácio vislumbra uma monarquia constitucional erguida em torno da figura de dom Pedro. Ele calcula que a autoridade do príncipe, somada à gravidade do trono, será capaz de manter coeso o vasto território nacional, abrindo espaço para reformas que multipliquem a produção de suas riquezas. VEJA pode adiantar que o ministro planeja medidas ousadas como a abolição da escravatura e a instituição do ensino obrigatório. Pelo menos a primeira conta com a simpatia do príncipe, mas enfrentará enorme oposição. Os interesses organizados em torno da servidão são enormes.

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LISBOA - Assembleia acalorada das Cortes: os constitucionalistas subestimaram a índole de dom Pedro -
LISBOA - Assembleia acalorada das Cortes: os constitucionalistas subestimaram a índole de dom Pedro – (Oscar Pereira da Silva, Acervo do Museu Paulista da USP/.)

Desde o Dia do Fico, dom Pedro tem dado mostra, porém, de estar à altura da tarefa que o destino lhe oferece. Abafou em março, praticamente sozinho, uma rebelião de militares lusos que ameaçava erguer-se em Vila Rica, na província de Minas Gerais. Com o mesmo desassombro, veio a São Paulo em agosto pacificar os grupos rivais que disputavam o comando político da província. Dessa viagem resultou o grito de Ipiranga. São Paulo, Rio e Minas Gerais, é bem sabido, formam o tripé no qual se apoia a revolução da independência.

Muitos se perguntarão se dom Pedro rompeu com o pai ao tomar para si a causa brasileira. A resposta a essa pergunta é um sonoro “não”. O príncipe se corresponde assiduamente com sua majestade e o mantém a par dos fatos e dos sentimentos deste lado do Atlântico. Dom João sabe, por exemplo, que dom Pedro atribui às tropas portuguesas a responsabilidade pela morte de seu filho, dom João Carlos. O principezinho de saúde frágil adoeceu na fuga de dona Leopoldina do Rio de Janeiro para a Fazenda Santa Cruz. A viagem atabalhoada, sob calor de 36 graus, foi forçada pela ameaça militar portuguesa na ocasião do Fico — e revelou-se excessiva para o herdeiro de apenas 10 meses. Sua morte prematura e trágica, que comoveu a todos os brasileiros, selou a indisposição do príncipe em relação ao governo dos seus compatriotas. Dom João sabe, também, dos riscos de fragmentação que corre o Brasil, caso se instale entre nós a febre republicana que varre nosso continente a partir dos Estados Unidos da América. Não é mais segredo que, ao deixar estas terras no ano passado, obrigado pelas Cortes, o rei sugeriu ao filho que empalmasse o poder antes que “algum aventureiro” o fizesse. Agora, com aventureiros firmemente encastelados em Lisboa, o futuro da Casa de Bragança e talvez da própria monarquia passa pela criação de um reino independente no Brasil.

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MODELO - Português A Revolução do Porto, de 1820: inspiração para as mudanças no além-mar brasileiro -
MODELO – Português A Revolução do Porto, de 1820: inspiração para as mudanças no além-mar brasileiro – (Universidade de Coimbra/.)

Na tarde do 7 de setembro, todas as linhas dessa história cruzaram o caminho de dom Pedro. O príncipe terminava de subir a Serra do Mar, depois de pernoitar na cidade de Santos, quando chegaram a ele dois mensageiros vindos do Rio de Janeiro. Encontraram o príncipe agastado por um problema intestinal que o perseguia desde o litoral e o obrigava a constantes paradas no trajeto. Os cavaleiros esbaforidos traziam três cartas. Na principal delas, Bonifácio comunicava o príncipe das últimas e draconianas decisões das Cortes, que haviam chegado ao Rio de Janeiro em 28 de agosto, pelo veleiro Três Corações. Dom Pedro estava destituído do papel de regente, diziam os documentos, e todas as suas decisões recentes ficavam anuladas. Mais: a autoridade do príncipe se limitaria, ora em diante, à província do Rio de Janeiro. Lisboa nomearia os novos ministros (os atuais seriam “investigados”) e comandaria o resto do Brasil. De uma penada, Portugal punha um príncipe de lado e passava rédeas curtas na colônia. “Senhor, o dado está lançado, e de Portugal não temos a esperar senão escravidão e horrores”, escreveu Bonifácio, alvo principal das investigações que as Cortes desejavam realizar. “Venha, V.A.R., o quanto antes e decida-se, porque irresolução e medidas de água morna para nada servem.” A segunda carta, igualmente enfática, era de dona Leopoldina. Ela urgia com o marido para que voltasse ao Rio e recomendava que acatasse as recomendações do ministro. “Só a sua presença, energia e rigor para salvar o Brasil da ruína”, escreveu a princesa. Ainda há dúvidas sobre a autoria da terceira carta. Alguns têm dito que ela veio de Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, irmão do ministro Bonifácio, representante de São Paulo nas Cortes de Lisboa. Outros a atribuem a Henry Chamberlain, cônsul britânico no Rio de Janeiro. As duas versões coincidem, porém, no conteúdo da missiva: ele dava conta do ressentimento que dom Pedro desperta nos constituintes de Lisboa e das medidas drásticas que lá se tramam contra ele.

ÀS ARMAS, CIDADÃO - O almirante Thomas Cochrane, que está no Chile: convidado a vir lutar -
ÀS ARMAS, CIDADÃO - O almirante Thomas Cochrane, que está no Chile: convidado a vir lutar – (James Ramsay/.)
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“Dom Pedro, tremendo de raiva, arrancou de minhas mãos os papéis e, amarrotando-os, pisou-os e deixou-os na relva. Eu os apanhei e guardei”, relatou a VEJA, com exclusividade, o padre mineiro Belchior Pinheiro de Oliveira, que acompanhava o príncipe na viagem. O padre conta que dom Pedro, depois de caminhar alguns minutos em silêncio, ruminando pensamentos, dirigiu-se exaltado aos que o cercavam: “As Cortes me perseguem, chamam-me com desprezo de rapazinho e brasileiro. Pois verão agora quanto vale o rapazinho. De hoje em diante, estão quebradas as nossas relações. Nada mais quero com o governo português e proclamo o Brasil, para sempre, separado de Portugal”. Outra testemunha da cena, o alferes Francisco de Castro Canto e Melo, relata o evento de forma concisa, mas ainda mais eloquente. Tendo lido as cartas, disse ele a VEJA, o príncipe recolheu-se em silêncio por alguns instantes e depois, determinado, esbravejou: “É tempo. Independência ou morte! Estamos separados de Portugal”. O jovem Canto e Melo, como sabem os moradores de São Paulo, é irmão da bela senhora Domitila, a mesma que, dias atrás, ingressou com ares de marquesa no círculo mais íntimo dos amigos de dom Pedro, tendo acabado de conhecê-lo (leia na seção Gente).

Qualquer que seja o resultado da aventura em liberdade a que se lança o Brasil, ele pode ser atribuído, desde já, ao empenho de uma tríade de personalidades únicas, formada por dom Pedro, José Bonifácio e dona Leopoldina. Se os dois primeiros são homens públicos, cujos atos e ideias são conhecidos dos brasileiros, o labor da princesa de 25 anos pela independência foi mais discreto. A despeito das relações conjugais estremecidas, que são matéria de incessantes rumores no Rio de Janeiro, dona Leopoldina conserva-se firme ao lado do marido, emprestando-lhe determinação e conselhos para opor-se aos portugueses. A sobrinha-neta de Maria Antonieta é monarquista convicta e tem aversão aos herdeiros da guilhotina. Sua ampla cultura e sua rede de contatos diplomáticos na Europa foram postas a serviço da causa brasileira desde sempre. Foi ela quem convenceu Bonifácio a aceitar o cargo de ministro em janeiro, quando ele ainda desconfiava da firmeza de dom Pedro. Juntos, ela e Bonifácio praticamente escreveram os termos da independência, que o príncipe proclamou no Ipiranga. Que a princesa tenha papel político tão relevante enquanto gesta seu quinto filho (e luta com dificuldades financeiras constrangedoras), dá provas de um caráter feminino excepcional. A ela, aconteça o que acontecer, os brasileiros livres devem muito.

Publicado em VEJA de 13 de setembro de 2022, edição especial nº 2805

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