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A alta tensão política nos bastidores da Olimpíada de Paris

Em um mundo chacoalhado por guerras e rachado pela polarização, os Jogos refletem o nosso tempo

Por Monica Weinberg e Fábio Altman, de Paris
Atualizado em 2 ago 2024, 13h33 - Publicado em 2 ago 2024, 06h00

A abertura da Olimpíada sobre as águas do Sena não havia nem acontecido quando, no primeiro dia de competições, em 24 de julho, uma partida de futebol entre Israel e Mali já dava a elevada temperatura sob a qual esses Jogos de Paris transcorrem — e não é a do inclemente verão canicular que se anuncia. O duelo esportivo foi tomado por uma batalha em outro campo. Vaias ecoavam no estádio durante o hino nacional israelense. A resposta veio com gritos: “Israel, Israel!”. Bandeiras da Palestina eram agitadas na arquibancada, e torcedores vestiam camisas com um bordão em inglês: “Free Palestine”, uma Palestina livre. Estava ali uma amostra da alta tensão que emoldura o torneio, e à qual ele não é impermeável, ao contrário: o evento de alcance planetário é caixa de ressonância do mundo que chacoalha à sua volta.

CORTEM-LHE A CABEÇA - Uma Maria Antonieta moderna ao som de Ça Ira: ideologia já na abertura
CORTEM-LHE A CABEÇA – Uma Maria Antonieta moderna ao som de Ça Ira: ideologia já na abertura (Nathan Laine/Getty Images)

Quando o barão Pierre de Coubertin revirou o baú dos gregos e repaginou as Olimpíadas para a era moderna, em 1896, desencavou a ideia da trégua olímpica, a antiga tradição segundo a qual os conflitos eram interrompidos sete dias antes e sete dias após o torneio. Funcionava, mas revelou-se utópico no intrincado tabuleiro geopolítico dos séculos XX e XXI. Ainda que a Carta Olímpica sugira, em texto vago e intencionalmente ingênuo, a neutralidade em nome da paz, o esporte nunca mais fez cessar tiros e bombas, misturando-se às circunstâncias políticas que o rodeiam. O planeta que os Jogos encaram agora não é para amadores, rachado por conflitos sangrentos e sob as fissuras da polarização. “Vivemos provavelmente o mais tenso momento visto desde o final da Guerra Fria, e não há como isso não se refletir na Olimpíada”, disse a VEJA Lukas Aubin, especialista em geopolítica nos esportes do Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas da França.

Ao longo destes dias, a preocupação em não deixar a ebulição manchar a festa se manifestou em palcos como o Palais de l’Élysée, sede da Presidência, onde o presidente Emmanuel Macron externou a uma plateia de estrangeiros, entre ça vas protocolares e acepipes, algo que vem atormentando a todos desde o marco zero. “Espero que as guerras que sacodem o mundo não estraguem o que é para entreter e unir os povos”, disse. São palavras lançadas ao vazio em meio à confusão que ele próprio armou, na véspera da festa, pondo fogo na pira política. Em incompreensível xadrez, Macron dissolveu a Assembleia Nacional por estar enfraquecido — e mais fraco ficou. A França tem um primeiro-ministro demissionário e não consegue escolher o sucessor.

PROCURA-SE - Cartazes com o rosto de Putin espalhados pela cidade: a banida Rússia é um dos grandes espinhos olímpicos
PROCURA-SE - Cartazes com o rosto de Putin espalhados pela cidade: a banida Rússia é um dos grandes espinhos olímpicos (Kevin Voigt/Getty Images)
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O banzé local somou-se ao nervosismo internacional. Um dos vespeiros mais sensíveis é o da guerra entre Rússia e Ucrânia, em que o Comitê Olímpico Internacional (COI) meteu a colher ao decidir banir os russos e, por tabela, seus aliados bielorrussos. Os pouco mais de trinta atletas das duas nacionalidades que duelam por medalhas competem sem bandeira nem hino. Não têm apoios de comitês olímpicos nacionais, já que o COI decidiu penalizá-los por terem reconhecido organizações esportivas em territórios ucranianos anexados ilegalmente, movimento vetado pela Carta Olímpica. O COI já vinha há tempos analisando o veto à Rússia, e o martelo foi enfim batido em dezembro passado. Vladimir Putin reagiu: “Vou fazer a minha própria Olimpíada”.

O argumento dos dirigentes da vetusta entidade: a Rússia invadiu a Ucrânia entre os Jogos Olímpicos e Paralímpicos de Inverno em Pequim, em 2022, rompendo com a trégua imaginária. Os ucranianos, instalados em prédio discreto na Vila Olímpica, recomendaram a seus atletas, por vias oficiais, que “mantivessem o máximo de distância possível” dos esportistas inimigos. Abertamente pró-Ucrânia, a prefeita de Paris, Anne Hidalgo, chegou a esbravejar: “Por mim, eles nem vinham”. Nas ruas da cidade, avistam-se cartazes de “procura-se” com o rosto de Putin estampado.

A chegada dos atletas de Israel, que trava um mortal conflito com o Hamas, reafirme-se, atiçou a polêmica. Logo de saída, um deputado da extrema esquerda francesa disparou: “Vocês não são bem-vindos”. Macron teve de vir aos holofotes reforçar que, muito pelo contrário, os israelenses terão boa acolhida. Na Vila, andam sem uniforme, de modo a não ser identificados, e são monitorados de perto por um grupo de agentes de segurança cujo tamanho não foi revelado. “Pensar o esporte como atividade apolítica é um mito”, diz Jean-Baptiste Guégan, especialista da faculdade Sciences Po, em Paris.

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ESPELHO DA HISTÓRIA - Punhos erguidos dos “panteras negras” em 1968 (à esq.) e o ataque terrorista de 1972: política na veia
ESPELHO DA HISTÓRIA – Punhos erguidos dos “panteras negras” em 1968 (à esq.) e o ataque terrorista de 1972: política na veia (Bettmann/Getty Images)

Nenhuma Olimpíada pode ser uma ilha. São arenas saudáveis para o exercício da política e podem servir, inclusive, de terreno fértil para germinar boas bandeiras e trazer à luz expressões inaceitáveis do poder. Foi assim com a exclusão dos Jogos da África do Sul em plena era do apartheid, de 1964 a 1988. O veto à presença da Alemanha, depois das duas grandes guerras mundiais, também representou castigo (muito bem dado, aliás) em favor dos direitos humanos, que o país havia demolido. Foram decisões corretas, carbono de seu tempo, embebidas da ideologia que os cartolas juram neutralizar.

Os Jogos ajudam a contar os passos e tropeços do vaivém diplomático e bélico. A vitória do velocista americano negro Jesse Owens, em 1936, foi um tapa na cara do racismo de Hitler, com o nazismo em ascensão. Os punhos erguidos dos “panteras negras” John Carlos e Tommie Smith no pódio da prova dos 200 metros rasos, em 1968, tinham as feições daqueles anos agitados. Ambos perderam as medalhas, mas o mundo girou, e Smith foi recebido como herói pelos franceses no início de 2024. Em 1972, o ataque terrorista do grupo palestino Setembro Negro deflagrou uma crise mundial e iluminou enrosco ainda sem solução. Os boicotes de 1980 (dos americanos e seus amigos contra os soviéticos) e de 1984 (o revide dos comunistas) serviram igualmente como rascunho dos impasses da humanidade.

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Pouco depois da sabotagem nos trens parisienses, a abertura no Sena, que se desenrolou sob alerta máximo de terrorismo, também deu seu mergulho de enciclopédia, ao atravessar capítulos de sangue da civilização, como o da Revolução Francesa, embalado pela canção Ça Ira (“Ah, ficará bem, ficará bem, os aristocratas vamos enforcar”). Uma Maria Antonieta moderna e teatral despontou de cabeça cortada. A jornada lúdica pôs em cena, ainda, a diversidade de gêneros, com uma Santa Ceia de drag queens, em postura que Coubertin consideraria inaceitável. E o que dizer dos enfáticos gritos aos pés da Torre Eiffel de “Viva a Ucrânia, viva a Palestina”? Na Olimpíada de Paris, o que não falta é torcida. Tudo é política.

Publicado em VEJA de 2 de agosto de 2024, edição nº 2904

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