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Fifa já não consegue controlar protestos em campo — e essa é boa notícia

No mais global dos palcos, o planeta soube da discriminação misógina do Catar, do que acontece no Irã e, claro, do preconceito de raça

Por Fábio Altman, de Doha
Atualizado em 4 jun 2024, 11h13 - Publicado em 25 nov 2022, 06h00
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  • Há jogos de Copa do Mundo que fazem história — e, tão logo terminam, dada a surpresa, como foi o 7 a 1 da Alemanha contra o Brasil, em 2014, ou mesmo a derrota da Argentina para a Arábia Saudita, agora em 2022, caminham para virar verbete de dicionário. Foi assim com atípica goleada da Inglaterra contra o Irã, por 6 a 2. O placar elástico talvez fosse suficiente para fazer a partida ecoar pela eternidade. Mas as horas tensas que a antecederam, os instantes imediatamente anteriores ao apito inicial do juiz brasileiro Raphael Claus e a movimentação da torcida no Estádio Khalifa International emprestaram ao duelo uma temperatura especial. Foi como se toda a política que a Fifa tenta subtrair do futebol entrasse em campo.

    O atacante Harry Kane, da Inglaterra, tinha anunciado usar uma braçadeira com as cores do arco-íris, de apoio à comunidade LGBTQIA+, tratada no Catar como gado — os capitães de outras sete seleções haviam anunciado o mesmo gesto. A Fifa, que dá tudo para tirar esse camelo da sala, pressionou, ameaçou com multas e cartões amarelos. Como recurso alternativo, os ingleses trataram então de se ajoelhar, ao modo do gesto do quarterback da NFL, Colin Kaepernick, em grita contra o hino americano na antessala do tempo de Donald Trump e que depois viralizaria. No Reino Unido, a postura tem sido utilizada para condenar o racismo.

    GRITO CALADO - Os iranianos não cantaram o hino nacional: em defesa de quem luta contra a misoginia no país -
    GRITO CALADO – Os iranianos não cantaram o hino nacional: em defesa de quem luta contra a misoginia no país – (Fadel Senna/AFP)

    A chantagem dos cartolas freou o ímpeto dos súditos do rei Charles III, mas não os iranianos que, aliás, gritaram de boca fechada. Eles não entoaram o hino nacional, em protesto contra a morte de Mahsa Amini, de 22 anos, que havia sido detida por ter deixado fios de cabelo à mostra por debaixo do lenço islâmico. As autoridades de Teerã afirmam que a jovem morreu em razão de uma doença, e não por ter sido espancada, informação torta que incendiou os protestos de rua em Teerã. Mais de 400 pessoas já foram mortas, 15 000 presas e seis condenadas à morte. O zagueiro Saman Ghoddos, nascido na Suécia de pais iranianos, elogiou os “valentes homens e mulheres” que foram às ruas e disse: “Não quero mesclar política e futebol, mas tocou no futebol, porque as pessoas estão perdendo a vida lutando por seus direitos”. Na arquibancada, havia cartazes em defesa das mulheres iranianas. Torcedores do Irã aplaudiram a derrota.

    E então, no mais global dos palcos, o planeta soube da discriminação misógina do Catar, do que acontece no Irã e, claro, do preconceito de raça. Os cartolas tentam calar a voz que emana da sociedade por meio de jogadores de futebol, o que não ocorria no passado recente, mas parece terem perdido o controle. Tanto que, antes da derrota para o Japão por 2 a 1, os jogadores alemães levaram a mão à boca na hora da foto oficial. É uma resposta firme à postura oficial. Afinal, soou como provocação uma frase do presidente da Fifa, Gianni Infantino, confrontado com o tom de críticas que antecipava o torneio: “Depois do que nós, europeus, fizemos ao mundo nos últimos 3 000 anos, caberia pedir desculpas por mais 3 000 anos antes de darmos lições de moral”. Dá para ter as duas posturas simultaneamente: o mea-culpa do colonizador e a cobrança por liberdade em países autoritários.

    Publicado em VEJA de 30 de novembro de 2022, edição nº 2817

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