A polêmica sobre mulheres trans no esporte: muito preconceito e pouco bom senso
Depois de Trump banir participação em competições femininas, entidade do atletismo pode seguir o mesmo caminho

No início do mês, cercado por meninas, crianças e adolescentes sorridentes, quase esfuziantes, Donald Trump assinou um decreto proibindo a participação de mulheres transgênero em competições esportivas femininas. A decisão anda de mãos dadas com um dos lemas mais agressivos, e de tom grosseiro, da campanha presidencial: “Manter os homens fora das competições femininas”. A Casa Branca pretende, depois de forçar escolas públicas a respeitarem as regras — embora alguns estados comandados pelo Partido Democrata já tenham demonstrando desconforto —, pressionar as federações esportivas e o Comitê Olímpico Internacional, o COI. Lembre-se que a próxima Olimpíada, em 2028, será disputada em Los Angeles. “A canetada de Trump pode expor os jovens a assédio e discriminação”, diz Kelley Robinson, presidente do grupo Human Rights Campaign, a maior ONG americana em defesa dos direitos LGBTQIAPN+. “O esporte, afinal, é um modo de inclusão, de aprender os valores do trabalho em equipe, dedicação e perseverança.” Por mimetismo, e complexo de vira-latas, a deputada bolsonarista Bia Kicis (PL-DF) prometeu se empenhar para acelerar um projeto semelhante que está parado na Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal.

O movimento conservador imposto pelo presidente americano — que ultrapassa os campos, ginásios, pistas e piscinas, e pretende se espalhar por todos os setores da sociedade — pode ganhar, já na largada, um parceiro de relevo: a World Athletics, a antiga Federação Internacional de Atletismo, se reunirá, no início de março, para endurecer ainda mais o acesso de pessoas trans às competições. De acordo com as normais atuais, introduzidas há um ano, qualquer atleta que tenha passado pela puberdade masculina é barrada de torneios para mulheres. Ancorados em pesquisas científicas, os cartolas chegaram à conclusão de que havia vantagem em força, resistência e capacidade pulmonar, mesmo depois de tratamento para suprimir a testosterona masculina. A ideia, agora, é realizar testes de saliva em todos os casos, mesmo para quem tenha iniciado a transição de gênero antes da puberdade, supondo que já na infância possam ter sido deflagradas as diferenças de desempenho. O inglês Sebastian Coe, presidente da entidade de atletismo, foi direto ao ponto: “Nossas diretrizes acompanham as informações mais recentes disponíveis de modo a estabelecer justiça e nivelação na categoria feminina”.
É claro, as mulheres cisgênero podem sentir-se prejudicadas, e tem todo o direito de relevar incômodo — e o tema exige zelo e calma. Um estudo recente financiado pelo COI, encomendado para a Universidade de Brighton, no Reino Unido, dá uma ideia da complexidade do problema. Ele mostrou que atletas femininas transgênero tinham, sim, capacidade aeróbica ligeiramente maior na comparação com mulheres cis. Contudo, têm desvantagem na força dos membros inferiores e igual capacidade de oxigenação (veja o quadro).

Os dados, associados a outros trabalhos de relevo, põem em xeque a tese do benefício irreversível. Em algumas situações, aliás, o suposto favoritismo não se confirma na prática. Foi o caso da levantadora de peso neozelandesa Laurel Hubbard, primeira atleta trans de toda a história olímpica. Presente aos Jogos de Tóquio, em 2021, ela voltou de mãos abanando. Nem mesmo chegou às finais da categoria de mais de 87 quilos — segundo o senso comum, dado o histórico dela, a competidora deveria ser praticamente invencível numa disputa feminina. “As mulheres trans podem até ter desvantagens, dada a dificuldade de manter capacidade aeróbica e massa muscular em corpos maiores”, diz Joanna Harper, cientista esportiva, ela mesma trans.
O campo relativamente recente de pesquisas nessa área dá margem para que cartolas esportivos estipulem regras que soam como um ataque à briga por direitos humanos e pela diversidade. A nadadora americana Lia Thomas perdeu um processo movido contra a World Aquatics, a Federação Internacional de Esportes Aquáticos, um pouco antes dos Jogos de Paris, no ano passado. Excluída das competições classificatórias americanas, ela tentou reaver o direito de competir. Não conseguiu e, ao fim do julgamento, acabou banida das provas de elite. A política da World Aquatics determina que nadadores homens que fizeram a transição para mulheres só seriam elegíveis para competir nas categorias femininas se fizessem a transição antes dos 12 anos de idade ou antes de atingirem o chamado estágio 2 da puberdade, no qual ocorrem as mudanças físicas no corpo. Não foi o caso de Thomas, o que a desqualificou.

Em alguns casos, a falta de cuidado na tentativa de estipular regras nesse campo produziu injustiças. O episódio mais conhecido de ruído foi o da sul-africana Caster Semenya, bicampeã olímpica dos 800 metros em 2012 e 2016, que tem hiperandrogenismo, disfunção caracterizada por altos níveis de testosterona. Ela sempre enfrentou as críticas, e a Justiça ora a impedia de correr, ora a autorizava a fazê-lo. Em 2023, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos entendeu que Semenya sofreu discriminação ao ser impedida de participar de competições femininas por se recusar a passar por um tratamento para reduzir o nível de testosterona. “Há uma premissa que não pode ser abandonada, a de que todo mundo tem direito à prática esportiva”, disse a VEJA o presidente do Comitê Olímpico do Brasil, Marco La Porta. “É básico e inegociável. No alto rendimento, contudo, há regras que precisam ser respeitadas, em nome do equilíbrio, a partir de orientações das confederações, e desde que exista real amparo científico.” O bom senso, como anota La Porta, é o correto. Convém esmiuçar os detalhes de cada modalidade e deixar fora do campo a cegueira ideológica.
Publicado em VEJA de 21 de fevereiro de 2025, edição nº 2932