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Ayrton Senna: há 18 anos, a morte antes da curva

Em 1º de maio de 1994, o tricampeão mundial de Fórmula 1 morreu no GP de San Marino. Naquela semana, VEJA publicou a quarta edição extra de sua história - antes da tragédia com Senna, só a posse de Geisel, a morte de JK e o impeachment de Collor haviam sido tema de um número extra. Leia a seguir a reportagem original daquela revista especial

Por Da Redação
1 Maio 2012, 13h13

“A dimensão da tragédia com Ayrton Senna pode ser avaliada pelos estragos dentro e fora do carro. No local do impacto, o muro de concreto ficou marcado com as cores azuis do Williams. O chão ao lado do carro destruído ficou marcado por uma larga poça de sangue”

As imagens ficarão gravadas como um raio na memória dos brasileiros. Na sétima volta do Grande Prêmio de San Marino, no autódromo de Ímola, na Itália, Ayrton Senna passa direto pela curva Tamburello, a 300 quilômetros por hora, e espatifa-se no muro de concreto. À 1h40 da tarde, hora do Brasil, um boletim médico do hospital Maggiore de Bolonha, para onde o piloto foi levado de helicóptero, anunciou a morte cerebral de Ayrton Senna. Não havia mais nada a fazer. Ayrton Senna da Silva, 34 anos, tricampeão mundial de Fórmula 1, 41 vitórias em Grandes Prêmios, 65 pole-positions, um dos maiores fenômenos de todos os tempos no automobilismo, estava morto.

Ninguém simboliza melhor a comoção que tomou conto do mundo que a imagem de Alan Prost chorando num dos boxes de Ímola. Não era o choro de um torcedor, mas de um rival, o maior de todos em dez anos de brigas dentro e fora das pistas, um alter ego de Ayrton Senna na Fórmula 1. Na manhã de domingo, minutos antes de entrar pela última vez no cockpit de sua Williams, Senna encontrou-se com o ex-adversário, deu-lhe um tapinha nas costas e comentou: “Prost, você faz falta.” Horas mais tarde, cercado pelos jornalistas, o francês não conseguiu retribuir a gentileza. “Estou consternado demais para falar”, limitou-se a dizer, com lágrimas nos olhos.

Foi o triste epílogo de um final de semana em que a morte passeou pelo circuito de Ímola. Na sexta-feira, o carro do brasileiro Rubens Barrichello espatifou-se. Barrichello só não morreu porque o choque foi amortecido pelos pneus. Nos treinos de sábado, o carro do austríaco Roland Ratzenberger se desintegrou no muro de concreto depois de passar reto numa curva. O piloto chegou morto ao hospital, vítima de comoção cerebral. Esse foi o quadro de presságios que antecedeu o acidente com Senna. O piloto brasileiro manteve a liderança do Grande Prêmio por exatos 21 minutos. Às 9h40, vinte e cinco horas depois da morte de Ratzenberger, a Williams de Senna sumiu repentinamente da pista. “Eu vi a traseira do seu carro bater no solo violentamente”, contou o alemão Michael Schumacher, que ia colado em Senna na entrada da curva. “Em seguida, ele perdeu completamente o controle.”

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O Williams era apontado como o melhor carro do mundo e, nesta temporada, tinha também o melhor piloto do mundo. Como foi possível um acidente como esse? O que existe por enquanto são especulações. De todas elas, a mais provável aponta para uma combinação de dois fatores: a pista ruim com um defeito mecânico. Schumacher diz que o carro pulou duas vezes antes de sair da pista. O ex-campeão Niki Lauda afirma que o problema foi mecânico, provavelmente uma quebra na suspensão, mesma opinião do brasileiro Nelson Piquet. Uma outra explicação está nos pneus. Como a corrida estava começando depois de uma parada provocada por um acidente na largada, os pneus ainda não teriam atingido a temperatura e a pressão adequadas para manter o carro na pista. Senna pisou fundo e foi jogado para fora.

O acidente com Ratzenberger, ocorrido na véspera, é mais fácil de explicar porque uma câmara de televisão flagrou o momento em que o carro perdeu o aerofólio dianteiro. Sem essa peça, que pressiona o carro para baixo e o mantém firme na pista, Ratzenberger voou direto de encontro ao muro. É possível que algo assim tenha ocorrido com Senna. Na tarde de segunda-feira, uma análise em câmara lenta feita pela televisão francesa mostrava que antes de sair da pista o carro do piloto brasileiro teria perdido uma peça, não identificada pela TV. “O problema é que Ímola é uma pista tão rápida que não dá tempo de reagir a qualquer falha”, diz Niki Lauda. “A menos que você ponha o muro a 200 metros da pista.” Na pista atual a distância entre a faixa de asfalto e o muro é de menos de dez metros. “É óbvio que houve uma falha mecânica”, diz Alain Prost. “O carros estão muito perigosos porque estão mais difíceis de dirigir.”

A opinião de Prost pode não explicar o acidente, mas ajuda a entender o dilema atual da Fórmula 1. O Williams-Renault foi o melhor carro nas duas últimas temporadas porque, além de ser o mais veloz, era também o que tinha os controles mais eficientes. Engatava as marchas na hora certa e compensava as falhas na pista com a chamada suspensão ativa, cuja tarefa é impedir que a trepidação desestabilize o carro. Agora, não. O carro continua veloz, mas o piloto é quem tem de fazer tudo sozinho. A falta da suspensão ativa tornou o carro instável demais. O próprio Senna havia apontado esse problema num artigo de jornal antes do Grande Prêmio Brasil. “Os carros estão rápidos demais e difíceis de controlar”, escreveu Senna. “O novo regulamento é uma arma contra os pilotos.”

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Um outro problema são as paradas no boxe. Este ano tornou-se obrigatório o reabastecimento e as trocas de pneus. Depois do acidente com Senna, um carro atropelou um mecânico da Ferrari na saída dos boxes depois da troca de pneus. Na segunda-feira, a Federação Internacional de Automobilismo (Fisa) convocou uma reunião de emergência em Paris, onde se iria discutir a colocação de um limite de velocidade para a entrada nos boxes – uma ironia em se tratando de um esporte onde vence o mais veloz.

A dimensão da tragédia com Ayrton Senna pode ser avaliada pelos estragos dentro e fora do carro. No local do impacto, o muro de concreto ficou marcado com as cores azuis do Williams. O chão ao lado do carro destruído ficou marcado por uma larga poça de sangue. O capacete do piloto rachou de cima abaixo no lado de direito, o que sugere que ele bateu com a cabeça no muro. O rosto ficou inteiramente destruído. Toda a parte frontal sofreu um afundamento de tal ordem que tornou impossível qualquer intervenção cirúrgica.

Em coma e já com uma parada cardíaca, o piloto ainda recebeu quatro litros e meio de sangue no trajeto do autódromo até o hospital. Isso equivale a 80% de todo o sangue que circula no corpo humano e dá a idéia exata da gravidade do seu quadro. O primeiro boletim médico, às 10 horas, falava em perda de sangue e múltiplas fraturas no crânio. O segundo, uma hora mais tarde, era ainda mais desanimador. Noticiava-se “coma grave”, “fortes hemorragias” e “grave traumatismo craniano”. Do hospital Maggiore, o corpo de Ayrton Senna foi levado para o Instituto Médico Legal de Bologna, de onde seria transportado para o Brasil num caixão selado. Na segunda-feira, o promotor Maurizio Passarine interditou o autódromo e abriu um processo contra os organizadores. O carro e o capacete também foram apreendidos pela Justiça italiana.

A notícia da morte de Senna deixou os pilotos desolados. Schumacher, o vencedor da corrida – a terceira na atual temporada -, deixou o pódio e foi chorar nos boxes. O austríaco Gerard Berger, companheiro de equipe de Ayrton Senna na temporada do ano passado na McLaren e personagem de um pavoroso acidente em Imola há cinco anos, levou um choque ao saber da notícia. “Não sei como vou voltar às pistas depois disso”, afirmou. Em Buenos Aires, Juan Manuel Fangio, 82 anos, a maior legenda de todos os tempos do automobilismo, sentiu-se mal ao ouvir a notícia pelo rádio. “Não, isso não pode ter acontecido”, foi sua primeira reação. Mais tarde, em uma nota divulgada pela família, Fangio declarou: “O mundo perdeu um dos maiores pilotos e eu perdi um grande amigo. Compartilho com os brasileiros esse momento de dor.”

Há doze anos, a Fórmula 1 não vivia momentos tão terríveis. Durante mais de uma década, o circo mais veloz do mundo viveu tranqüilamente sua existência milionária. O último piloto a morrer durante uma corrida tinha sido Ricardo Palleti, na largada do Grande Prêmio do Canadá, em 13 de junho de 1982. Imaginava-se que depois de tanto tempo e tantas mudanças nas regras e na tecnologia de construção dos carros, a Fórmula 1, embora continuasse a ter acidentes espetaculares, não fosse mais o picadeiro mortal dos anos 70, em que um em cada sete pilotos morreram em ação. As mortes de Senna e Ratzenberger reavivaram a verdade sobre um esporte fascinante mas cruel, onde se ganha muito dinheiro em troca de altos riscos. “É preciso que se diga uma coisa: a Fórmula 1 é um esporte extremamente perigoso e não depende da habilidade do piloto evitar acidentes”, disse o ex-campeão Niki Lauda, ele próprio vítima de um acidente. “Senna era o melhor piloto de todos os tempos. Ele sabia tudo.”

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Radiografia da morte

Imagine um pêndulo de aço de 50 quilos martelando numa campana com a espessura e a resistência de uma casca de ovo. Essa é a imagem apropriada para descrever como se movimentou o cérebro de Ayrton Senna na hora do choque de sua Williams contra o muro de concreto. É assim que se comportou a massa encefálica do piloto, com seu peso multiplicado por 100 no momento da colisão, batendo violentamente contra a caixa craniana. Esses sucessivos choques internos foram causados por um fenômeno chamado desaceleração súbita. Ele ocorre quando um determinado objeto em altíssima velocidade, no caso da Williams-Renault a cerca de 300 quilômetros por hora, encontra pela frente um objeto estático, o muro de concreto. O resultado é devastador do ponto de vista clínico.

“As camadas do cérebro deslizam umas sobre as outras, guilhotinando os axônios, espécie de fios que fazem as ligações nervosas da cabeça com todo o corpo”, diz o médico Luiz Alcidez Manreza, diretor do serviço de emergência neurológica do Hospital das Clínicas de São Paulo. “Esse tipo de lesão cerebral é a principal causa de morte instantânea em traumatismos de crânio.” Nesses casos, 60% das vítimas morrem. Na melhor das hipóteses, essas lesões neurológicas deixam graves seqüelas, ou o sobrevivente vira um vegetal. Dramatizando ainda mais a comparação, o badalo em questão, o cérebro de Senna, não era um corpo de metal como o abrigado num sino de verdade. O cérebro humano é formado por um tecido frágil, pouco mais consistente que um pudim.

Bastariam essas lesões, causadas pela desaceleração, para matar Ayrton Senna. Mas não foi só isso. A cabeça do piloto foi muito mais afetada do que fazem crer as imagens na televisão. Pernas, tórax, abdômen e coluna cervical, as partes do corpo mais propensas a sofrer o impacto de acidentes na Fórmula 1, saíram ilesas do desastre de Senna. A explicação é que essa região do corpo estava bem resguardada pelo cockpit, a cápsula quase indestrutível de fibra de carbono que abriga o piloto. Sem essa proteção, a cabeça bateu contra o muro de concreto. Uma testemunha, que viu o corpo de Senna antes de o caixão ser lacrado, conta que sua cabeça estava toda arrebentada. Ele sofreu um afundamento na testa e fraturas múltiplas na base do crânio, que provocaram hemorragias e edemas nessa região. Sua cabeça foi, portanto, alvo de dois tipos de traumatismo: o mais interno, a nível nervoso, causado pela desaceleração de velocidade, e o mais superficial, resultado da colisão direta de sua cabeça na parede.

Num caso tão grave assim, nem o melhor resgate médico do mundo seria capaz de fazer milagres. Não havia o que fazer, do ponto de vista médico. Ainda assim, o trabalho executado pela equipe médica de San Marino, embora correto, demorou mais do que o normal. Os bombeiros até que chegaram rápido ao local do acidente, cerca de vinte segundos depois da batida, e não entraram em ação porque não havia risco de fogo na Williams. Mas o serviço ambulatorial se atrasou. Os médicos da equipe de socorro do Grande Prêmio de San Marino só começaram o atendimento de Senna um minuto e quarenta segundos após o acidente. “Demoraram uma eternidade”, diz o neurocirurgião Hélio Laterman, ex-chefe da equipe de socorro nos Grandes Prêmios de Jacarepaguá de 1985 e 1986, no Rio de Janeiro. “Aqui no Brasil em trinta segundos já chegamos com o socorro médico ao local de um acidente”, diz o médico Jorge Pagura, chefe do atendimento neurológico nas corridas de Fórmula 1 disputadas em São Paulo.

O salvamento de Senna se deu no limite do aceitável, beirando a negligência. Dois minutos e meio depois da batida, ele foi retirado de sua Williams e, noventa segundos mais tarde, sofreu uma traqueostomia em plena pista – uma abertura em sua traquéia para que o piloto pudesse respirar. A boca e o nariz estavam bloqueados pelo sangue. O helicóptero que levou o piloto para o Hospital Maggiore de Bolonha decolou dezessete minutos depois da batida. Mas já era tarde. Os médicos italianos decretaram sua morte cerebral às 13h40 de domingo, horário de Brasília. Quarenta minutos mais tarde, o coração de Ayrton, que ainda batia com auxílio de aparelhos, parou.

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