Black Friday: Assine a partir de 1,49/semana
Continua após publicidade

Chute no bom senso: o “enrolês” domina as transmissões de futebol

O uso de expressões complicadas e, muitas vezes, sem sentido ganha espaço, mas a estratégia apenas afasta os torcedores

Por André Sollitto Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 12h34 - Publicado em 7 ago 2022, 08h00
  • Seguir materia Seguindo materia
  • Os professores de português, pelo menos os melhores, sempre afirmaram que a língua é viva, mas os novos narradores e comentaristas de futebol parecem dispostos a sufocá-la com um lero-lero incompreensível. Craque da seleção brasileira nos anos 1960 e 1970, Paulo Cezar Caju, hoje colunista da revista PLACAR, tem o hábito de colecionar frases ridículas e quase sempre sem sentido ditas por profissionais do mercado da bola. Basta dar uma espiada na lista preparada por Caju para notar que a enrolação costuma entrar em campo especialmente quando se trata de tática e esquemas de jogo. Veja esta: “O treinador precisa de um time automático com potência para espaçar o último terço e os corredores naturais da beirinha”. O quê? Eis outra aqui: “Nas trocas do 4-4-2 por um modelo clássico de linha de 5 e 4 na frente, é preciso ter amplitude e encorpar os volantes para o lado do campo e criar a opção do movimento corporal do 9”. Hã? Mais uma para fechar o rol de desatinos: “Com DNA ofensivo, o time tem compactação de ideias para agredir o adversário e fazer uma transição dinâmica, explorando o ponto de sustentação e a identidade do ataque”. Como assim?

    Os exemplos apresentados acima são apenas uma pequena parte do “enrolês” que passou a dominar as transmissões de futebol. É um fenômeno disseminado e aparentemente sem controle: com o fim do monopólio da Globo, as partidas passaram a ser exibidas em diversas plataformas, seja no streaming, seja nas redes sociais ou nos canais por assinatura. O modelo levou ao surgimento de uma nova geração de narradores e comentaristas — mais vagas foram abertas, afinal — e a uma série de programas esportivos que dominam a TV e as plataformas de internet. Nesse cenário, os supostos “especialistas” chutam o bom senso e dão caneladas no quesito compreensão.

    arte futebol

    O fenômeno é recente, mas no passado alguns profissionais do ramo também escorregavam no “tatiquês”. O treinador Cláudio Coutinho, que comandou a seleção na Copa de 1978, foi pioneiro em defender a disciplina tática importada da Europa e ficou conhecido pela terminologia, até então inédita, “ponto futuro”, em que um passe é feito no espaço vazio, esperando a aproximação de quem vem de trás. Tite, técnico da seleção, é mestre em expressões esnobes. Seu dialeto próprio inclui tolices como “externo desequilibrante”, para se referir aos bons e velhos pontas, além da expressão “jogador terminal” — calma, não é o atleta que está com os dias contados, mas o centroavante que faz gols. A diferença é que essa suposta sofisticação agora está nas palavras daqueles que deveriam explicar o jogo — e não obscurecê-lo.

    Nessa linha empolada, o futebol está indo na direção contrária à de outros segmentos. Nos últimos anos, a indústria financeira abandonou o “economês” para se aproximar de novos públicos e tornar suas mensagens mais compreensíveis. Hoje em dia, por exemplo, ninguém mais usa palavras pedantes como “emolumento” (felizmente substituída por “taxa”). No mundo jurídico, também há um movimento para facilitar a compreensão. A partir do escândalo do mensalão, o noticiário dos tribunais tornou-se onipresente e os comunicadores trataram de traduzir para o público o que os meandros legais queriam dizer. Nos dois casos, a imprensa — inclusive VEJA — teve papel vital para capturar o espírito do tempo e levar conteúdo denso com mais leveza para as novas gerações.

    Continua após a publicidade
    EM DEFESA DA SIMPLICIDADE - O narrador Galvão Bueno já se manifestou publicamente contra o vocabulário pedante da turma da bola. Em 2019, pediu ao técnico da seleção brasileira, Tite, que abandonasse a “pregação estranha” e as “palavras que não existem” -
    EM DEFESA DA SIMPLICIDADE – O narrador Galvão Bueno já se manifestou publicamente contra o vocabulário pedante da turma da bola. Em 2019, pediu ao técnico da seleção brasileira, Tite, que abandonasse a “pregação estranha” e as “palavras que não existem” – (Victor Pollak/TV Globo)

    No futebol, os narradores e comentaristas resolveram complicar tudo. A estratégia até pode ser entendida como arrogância, mas às vezes é também truque para esconder falta de conhecimento. Em vez de levar informação a quem assiste ao jogo, os profissionais embananam-se com comentários que, a rigor, não significam coisa alguma. “Todo esporte traz com ele um número de expressões e conceitos”, afirma o escritor e jornalista Sérgio Rodrigues. “O que está acontecendo agora é uma forma de mistificação: estão substituindo jargões já conhecidos por novos para falar apenas com os iniciados.” Nessas horas, é sempre bom recorrer à principal referência do país em locução esportiva. Em 2019, após um amistoso da seleção, Galvão pediu a Tite para parar de usar “palavras que não existem”. Sábio conselho.

    Publicado em VEJA de 10 de agosto de 2022, edição nº 2801

    Publicidade

    Publicidade

    Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

    Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

    Black Friday

    A melhor notícia da Black Friday

    BLACK
    FRIDAY

    MELHOR
    OFERTA

    Digital Completo

    Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

    a partir de 5,99/mês*

    ou
    BLACK
    FRIDAY
    Impressa + Digital
    Impressa + Digital

    Receba 4 Revistas no mês e tenha toda semana uma nova edição na sua casa (menos de R$10 por revista)

    a partir de 39,96/mês

    ou

    *Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
    *Pagamento único anual de R$71,88, equivalente a 5,99/mês.

    PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
    Fechar

    Não vá embora sem ler essa matéria!
    Assista um anúncio e leia grátis
    CLIQUE AQUI.