Contratos de patrocínio milionários reabrem a discussão sobre o fair play financeiro
Resumo da triste ópera: futebol é negócio, sim, mas exige transparência e zelo pelo conjunto da obra

O nome do jogo é dinheiro, e parece não haver alternativa: ou os times brasileiros tratam de controlar o equilíbrio financeiro ou morrerão na praia. Com um alerta inescapável: não basta ter os cofres cheios e as contas em dia, é preciso transparência. Tome-se, como medida do desequilíbrio, a predominância nos últimos anos do Flamengo e do Palmeiras. Entre 2019 e 2022, as equipes conquistaram o bicampeonato da Libertadores. Em 2023 deu Fluminense e, em 2024, Botafogo, como exceções que confirmam a regra. Na semana passada, a divulgação de um patrocínio de 268 milhões de reais da equipe rubro-negra, pagos anualmente por uma empresa de apostas, em contrato de quarenta meses de duração, ampliou ainda mais o fosso de preocupação — é 40% do que recebe o Manchester City, na Inglaterra.

Os torcedores do time da Gávea celebraram, é claro, mas o estardalhaço impõe levar ao centro do palco uma discussão essencial, sem a qual estaremos mal parados: trata-se de seguir religiosamente o chamado fair play financeiro, que é um conjunto de regras criadas para impossibilitar que o clube gaste mais do que arrecada e, assim, mantenha as finanças sustentáveis no longo prazo. O Brasil engatinha nessa direção. O modelo apenas agora passou a ser estudado com empenho por um grupo de trabalho montado pela Confederação Brasileira de Futebol, a CBF, com a participação de 34 clubes das Séries A e B e dez federações estaduais. A base legal já existia, mas foi sempre vergonhosa letra morta. “A Lei Geral do Esporte impõe a toda organização esportiva de abrangência nacional que administra determinada modalidade esportiva (como é o caso da CBF) a criação do seu próprio regulamento de fair play financeiro, de observância obrigatória por todas as organizações esportivas a ela associadas ou filiadas”, diz o advogado Felipe Crisafulli, membro da Comissão de Direito Desportivo da OAB/SP. No papel parece bonito, mas a realidade atrapalha.
A regra, claro, pune quem lhe desobedece. Na Europa, desde 2009, a União das Associações Europeias de Futebol (Uefa) exige comprovação, por parte dos clubes de elite, do chamado pagamento de solidariedade a equipes menores, visando ao equilíbrio dos participantes nas competições. Isso tirou o Milan da Europa League entre 2015 e 2018 pelas dívidas de mais de 121 milhões de euros. Nas confederações de cada país, as punições variam conforme a gravidade, de advertências e multas até perda de pontos e rebaixamento. O hexacampeão da primeira divisão da França, o Bordeaux, foi rebaixado à terceira divisão em 2024 por descalabro financeiro e declarou falência.

A abordagem no Brasil, no entanto, exige cautela. O modelo definido pelo grupo de discussão na CBF levará em conta as radicais diferenças dos caixas de clubes brasileiros. O Corinthians lidera a lista negativa, com cerca de 1,9 bilhão de reais em dívidas, incluindo aí o estádio a ser quitado. O clube paulista, inclusive, foi punido pela Fifa com o transfer ban, impedido de comprar jogadores de fora porque deve no mercado, especialmente ao Santos Laguna, do México, pelo jogador Félix Torres. “Os clubes mais endividados vão levar um tempo para se organizar”, diz o economista Cesar Grafietti, consultor especializado.
Depois do Corinthians, pela ordem, aparecem na lista Atlético Mineiro, Cruzeiro, Vasco e Botafogo, os quatro hoje geridos pelas Sociedades Anônimas do Futebol (SAFs) — longe, portanto, de serem o porto seguro sem falhas. O formato, regulamentado no Brasil em 2021, transforma os clubes em ativos, com donos, como empresas. Mas é só para inglês ver, em muitos casos. O time de São Januário, em recuperação judicial, acusa a má gestão da 777 Partners. O Glorioso da estrela solitária faz parte da Eagle Holdings, do americano John Textor, que também administra o Lyon, da França. O clube gaulês infringiu a regra de administração local e foi condenado ao rebaixamento, em decisão depois revertida. A crise reverberou pelas bandas de cá, e o Fogão teve de vender craques para aliviar o rombo.
Resumo da triste ópera: futebol é negócio, sim, mas exige transparência e zelo pelo conjunto da obra, como acontece, por exemplo, com as equipes de basquete da NBA. Qual a graça de uns serem muito mais ricos do que outros? E não se trata de conversa de perdedor. Louvem-se as boas gestões. Parabéns a quem, como Flamengo e Palmeiras, soube chegar a superávit primário, com faturamento anual em torno de 1,3 bilhão de reais. Mas o restante precisa também pegar o bonde. Há esperança, embora discreta. “O futebol brasileiro só é desorganizado, mas tem a capacidade de conseguir montar bons times, mesmo para quem tem menos dinheiro”, diz Grafietti. Logo, no entanto, essa brincadeira pode perder a competitividade.
Publicado em VEJA de 29 de agosto de 2025, edição nº 2959