Corpos em evidência: debate das mudanças de gênero no esporte ganha força
Ao criticar a participação de mulheres trans em torneios de surfe, uma renomada campeã americana trouxe o assunto de volta à tona
A surfista americana Bethany Hamilton, de 33 anos, é uma celebridade sobre as ondas — em 2003, depois de ser atacada por um tubarão no Havaí, ela teve o braço esquerdo amputado. Voltou a competir e chegou a ganhar algumas baterias, celebrada como heroína. Há alguns dias, já longe do circuito profissional, mas na ribalta de palestras e torneios para os quais é convidada especial, ela provocou espessa espuma com um ruidoso comentário. Instada a comentar a liberação de atletas transgênero em campeonatos da liga mundial da modalidade, a WSL, ela não vacilou ao criticar a iniciativa. Disse “amar todas as pessoas e humanos independentemente de quaisquer diferenças”, mas se mostrou “preocupada” com a decisão. “Acho que a melhor solução seria criar uma divisão diferente para que todos possam ter uma oportunidade justa de mostrar sua paixão e talento — e acho muito difícil imaginar como será o futuro do surfe feminino dentro de quinze ou vinte anos se seguirmos em frente, permitindo essa grande mudança”, ela postou nas redes sociais.
A postura de Bethany — a sugerir que pessoas que nasceram biologicamente homens não possam competir com esportistas do sexo feminino, e ao propor o caminho da exclusão em disputas específicas para esse grupo — provocou grita inédita. Quem a defende brande um argumento simples: as diferenças de biologia e anatomia, mesmo depois da transição de gênero, persistiram. Para os defensores dessa tese, quem atravessou a puberdade movida a testosterona seria naturalmente mais forte fisicamente. Na defesa da diversidade, haveria uma desigualdade. De causa justa e humana, a luta pela aceitação e pelo respeito de pessoas que têm identidades sexuais diferentes da própria biologia poderia se transformar em injustiça. “Eu apoio você, Bethany”, escreveu nas redes sociais a esquiadora medalhista de ouro olímpica Julia Mancuso. “Obrigada por falar por todas as mulheres e meninas por aí. Todas essas são perguntas interessantes para navegar nesse tópico difícil, e esperamos poder continuar lutando pelo futuro dos esportes femininos.” O ex-campeão de surfe Shane Dorian também saiu em defesa de Bethany. “Não dê ouvidos às pessoas que lançam a palavra transfóbica para qualquer pessoa cujas crenças não se alinham com as delas. São problemas complicados, sem solução clara. Há muitas pessoas que amam e apoiam a comunidade trans que concordam com você sobre essas questões.”
O raciocínio de que homens trans podem ter vantagens no esporte, aceitável do ponto de vista da medicina, pede um olhar cientificamente mais aprofundado, que não fique apenas na superfície — mas, ao colidir com a atual e bem-vinda postura global de respeito às diferenças e às vontades individuais, foi levado ao cadafalso, e com razão. A surfista e professora canadense Leah Nicole Tisdale assustou-se com o apoio ao ideário de quem se postou ao lado de Bethany — invariavelmente conservadores, para quem há uma “agenda trans” que precisaria ser condenada. Não há. “Os comentários me fizeram lembrar da ‘agenda negra’ durante a luta pelos direitos civis nos Estados Unidos e da ‘agenda feminista’ nos anos 1960, olhadas de modo pejorativo e que eram apenas um grito de liberdade”, disse Leah Nicole.
É inegável que homens e mulheres têm desempenhos diferentes. O período da puberdade é central para a demarcação dessas distinções. Na puberdade masculina, é a testosterona que garante o aumento da densidade óssea, da massa muscular, da altura e do tamanho dos membros. Além de produzir mudanças em órgãos como coração, pulmões e na quantidade de hemoglobina presente no sangue, fatores que podem contribuir para o aumento significativo da performance esportiva. Mulheres trans que passaram pela puberdade masculina, em tese, manteriam boa parte desses benefícios. O que de fato pode acontecer. A estatura e o tamanho de órgãos e membros, por exemplo, não são revertidos com a transição hormonal. É possível, portanto, que a estrutura corporal que resiste à hormonização — o estrogênio feminino em vez da testosterona masculina — se torne uma vantagem em alguns esportes. Contudo, é sempre bom lembrar, a medição de testosterona, a régua pela qual as federações de esporte aceitam ou barram mulheres trans, é apenas um dos aspectos a ser estudados. Há nuances que fazem toda a diferença — e um esportista trans pode entrar nas quadras e pistas em desvantagem, e não com indevida vantagem. Seria reducionista atribuir a performance de uma atleta exclusivamente ao seu corpo, negando as habilidades desenvolvidas com treinamento e preparo. “A testosterona não é o único fator definidor de sucesso no esporte, é fundamental considerar também a biologia e o ambiente da sociedade”, explica Erik Giuseppe Barbosa, professor da Escola de Educação Física e Desportos da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Dito de outro modo: uma mulher trans em meio a mulheres cisgênero não é certeza de vitória. Certo mesmo, por ora, é a polêmica.
Fez barulho a participação da levantadora de peso da Nova Zelândia Laurel Hubbard, a primeira atleta declaradamente transgênero a competir numa Olimpíada (ela não subiu ao pódio). Ganhou destaque a força da jogadora de vôlei trans Tiffany Abreu, que pontuava mais do que suas companheiras e que recebeu do treinador Bernardinho um comentário preconceituoso, ao ver um de seus times derrotado pela equipe de Tiffany, pelo qual ele se desculparia depois: “Um homem. É f***”. Mas nada se compara à fama da sul-africana Caster Semenya, campeã olímpica e mundial dos 800 metros rasos, mulher que nasceu com traços intersexuais — ou seja, seu corpo produz níveis atípicos de testosterona.
A discussão vai longe — o que se exige, apenas, é o cuidado com a inclusão, o fim de todo preconceito e o conhecimento científico. O resto é muito barulho por nada. Há um ponto fundamental, caminho para reduzir o espanto. O Comitê Olímpico Internacional liberou a participação de esportistas trans, com testosterona controlada, em 2003. Mais de 63 000 atletas chegaram ao patamar olímpico. Nesse período, duas mulheres trans competiram em Olimpíadas e nenhuma ganhou medalha. “A debatida superioridade não se evidencia em dados”, diz o médico endocrinologista Henrique Cecotti. Nem mesmo o velocista paralímpico Oscar Pistorius — que ficaria tristemente famoso acusado de ter matado a namorada — fez valer a vantagem de correr com pés mecânicos, de titânio, nos Jogos de 2012, em meio a atletas aptos. Dizia-se que a prótese o faria mais rápido. Não foi o que aconteceu. Na celeuma dos esportistas trans, convém deixar os exageros e as ideias preconcebidas de lado e refletir mais sobre a questão.
Publicado em VEJA de 1º de março de 2023, edição nº 2830