Ela joga nas onze: Megan Rapinoe faz história também contra o preconceito
A jogadora dos EUA dá as mãos, de algum modo, a figuras femininas que antes dela lutaram para ser ouvidas, como a tenista Billie Jean King
É difícil tirar os olhos de Megan Rapinoe — os cabelos, invariavelmente coloridos, um dia azulados, prateados, em outros tingidos de amarelo, a postura altiva de quem comemora gols de braços abertos, como se agradecesse à distinta audiência, senhoras e senhores. Ao entrar em campo no segundo tempo da vitória dos Estados Unidos contra o Vietnã por 3 a 0, na primeira rodada da Copa do Mundo disputada na Austrália e Nova Zelândia, foi como se o tempo parasse para homenageá-la. Aos 38 anos, ela anunciou a aposentadoria, e logo pendurará as chuteiras. Há outras jogadoras melhores e mais jovens, como a americana Sophia Smith, de 22 anos, e a colombiana Linda Caicedo, de 18 — e há Marta, a rainha Marta, também em fim de carreira —, mas só Rapinoe leva no corpo e na alma a trajetória afeita a traduzir os humores do mundo em transformação. A atacante joga nas onze. No futuro, quando as civilizações buscarem entender como foi que o futebol feminino cresceu, a moça nascida na ensolarada Califórnia terá lugar de destaque.
Pelos Estados Unidos, a camisa 15 foi campeã olímpica em 2012, nos Jogos de Londres; bicampeã mundial em 2015 e 2019, além de Bola de Ouro também em 2019. O melhor modo de entendê-la, contudo, é fora dos gramados. Não há briga de relevância que tenha escapado à Rapinoe, numa sucessão de movimentos contra o machismo, a homofobia, o racismo, o sexismo e as desigualdades de todo o tipo. “Trata-se de manter a cabeça erguida e dizer que você tem orgulho de ser quem é”, disse antes de vencer o torneio londrino que a pôs na ribalta ao revelar a homossexualidade, tema até então tratado com reserva, na defesa contra o preconceito e os ataques que viriam. E lá foi ela, vida afora, a seguir a frase que leva tatuada no bíceps do braço esquerdo, como luminosa porta-voz da comunidade LGBTQIA+: “a natureza seguiu seu curso”.
Seguiu. Em 2016, quando o jogador de futebol americano Colin Kaepernick ficou de joelhos pela primeira vez, durante a execução do hino americano, em grita contra a violência de policiais brancos, na antessala do governo de Donald Trump, houve incômodo — Rapinoe intuiu que seria a coisa certa, e logo decidiu também se abaixar antes de cada jogo. A eleição de Trump a deixou ainda mais irrequieta e não demorou para que anunciasse, aos quatro ventos, que se recusaria a acompanhar a delegação dos Estados Unidos até Washington, caso o país levasse o título mundial em 2019, vitória que viria. “Não irei à m***a da Casa Branca. Não cantarei a p***a do hino. Não respeitarei um sujeito que não merece respeito”, disse.
Nos anos da pandemia, de alguma calmaria esportiva, com estádios vazios e competições interrompidas, a mercurial Rapinoe parecia quieta em seu canto — só que não. Ela alimentava nos bastidores a pressão para que as autoridades americanas aprovassem um projeto de lei destinado a equiparar os salários das mulheres no futebol com os dos homens. E finalmente, em dezembro de 2022, deu-se a aprovação da lei equalitária (embora tê-la fora do papel sejam outros quinhentos). E é sempre bom lembrar: Rapinoe ganha algo em torno de 445 000 dólares por ano, o equivalente a pouco mais de 2 milhões de reais, como atleta do OL Reign. A título de comparação: o português Cristiano Ronaldo, também de 38 anos, veteraníssimo, recebe mais de 1 bilhão de reais por temporada para vestir a camisa do Al Nassr, da Arábia Saudita, a nova meca do esporte bretão.
Rapinoe tem noção de sua influência. “Ela se tornou um símbolo porque nunca se calou e aproveita a visibilidade para que algo seja feito”, diz Luiza Aguiar dos Anjos, pesquisadora do esporte dedicada a contradições de gênero e sexualidade. A lida atual da atleta é a defesa da população trans, em comentários sempre emocionados, um tom acima do banal. “É preciso dar um passo atrás e entender do que estamos falando. Estamos sujeitando crianças a um maior risco de suicídio, depressão, abuso de drogas e pouca saúde mental. Tudo na conta do ‘que Deus nos livre de ver uma pessoa trans se dar bem nos esportes’. Se liguem”, afirmou recentemente.
Rapinoe, dos pés à cabeça, faz história — dá as mãos, de algum modo, a figuras femininas que antes dela lutaram para ser ouvidas, como a tenista Billie Jean King, a primeira a revelar as distorções de pagamentos entre elas e eles. Um bom conselho: não tirar os olhos de Megan Rapinoe.
Publicado em VEJA de 2 de agosto de 2023, edição nº 2852