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O mundo em um cromo: o que explica a onda das figurinhas da Copa

O fenômeno ajuda a entender a inflação, o jogo das probabilidades e a relevância das amizades (além de ser divertido)

Por Luiz Felipe Castro Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Fábio Altman Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 12h25 - Publicado em 26 ago 2022, 06h00

Por que colecionamos objetos de arte, roupas, discos antigos, traquitanas de todo tipo e… figurinhas de jogadores de futebol? Eis a questão que se impõe com o lançamento do clássico álbum da Copa do Mundo, da editora italiana Panini, que começou a circular no domingo 21. Porque funciona como um jogo, porque é bacana, porque é divertido, porque reúne a família longe de um smartphone — ou mesmo, se for o caso de beber de uma leitura, digamos, psicanalítica, porque se trata de acumular pequenas emoções, ainda que sempre exista um risco de alimentar obsessões. Vale sublinhar uma conhecida frase de Walter Benjamin, extraída de um badalado ensaio, Desempacotando Minha Biblioteca, de 1931: “Toda paixão beira o caos, a do colecionador beira o caos da memória”.

Há, é claro, um modo menos pomposo de explicar a onda. “O segredo do sucesso é um misto entre o gosto pelo colecionismo e a paixão pela Copa do Mundo”, diz Carolina Motta, gerente de marketing da Panini. “É uma tradição, um marco histórico como o Natal ou a Páscoa, mas de quatro em quatro anos. É muito gostoso poder passar para sua filha ou filho esse hábito.” Não seria exagero afirmar também que, por trás da aparente leveza lúdica do álbum, mera brincadeira, é possível entender alguns movimentos do mundo — e se você, mãe ou pai, quiser alguns bons argumentos para dormir tranquilo à noite, depois de ter torrado dinheiro com os pacotinhos, convém saber que as figurinhas têm utilidade educativa.

arte figurinhas

Ajudam, em primeiro lugar, a entender os movimentos inflacionários. Em 2014, o pacotinho com cinco cromos custava 1 real. Em 2018, saltou para 2 reais. Agora, bateu nos 4 reais. Ou seja: de uma Copa para outra houve aumento de 100% — no mesmo período, a carestia medida pelo IPCA, o índice oficial de preços do Brasil, foi de 25%. A editora justifica o aumento em decorrência da escassez de papel e da necessidade de equiparação aos preços internacionais. Olhando um pouco mais para trás: em 2002, o pacote saía por 0,50 real, e vinha com seis unidades, e não as atuais 5. Uma figurinha valia, então, há vinte anos, 0,083 real, um décimo do que vale agora. Dói no bolso do consumidor — na alma, não —, mas os donos das bancas de jornais e revistas sorriem: de cada 4 reais, eles embolsam 1,20 real.

Colecionar serve também para aferir probabilidades. O matemático paranaense Guilherme Miguel Rosa, da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFP), publicou em 2019 um trabalho de conclusão de curso com uma ideia insólita: “O problema do colecionador de cupons: quanto custa completar o álbum de figurinhas da Copa do Mundo”. Rosa, que mantém no YouTube o canal Matemática em Exercícios, refez os cálculos para 2022. Para fechar sozinho todos os 670 espaços, sem ninguém para trocar, gastam-se 3  797 reais. Usando-se o recurso (que muitos consideram um anátema) de comprar quarenta figurinhas faltantes direto na editora, o valor cai para 1 504 reais. A troca com um único amigo resulta em desembolso de cravados 2  524 reais. Se é o caso de pôr outras dezenove pessoas na roda, o valor chega a razoáveis 991 reais. Ou seja: a mania, para além da agradável divisão de uma atividade com amigos, representa economia.

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figurinha Neymar

Mas o que vale mesmo, e está no ar, insista-se, é o aspecto sentimental e saudosista de colar, colar e colar… O engenheiro civil César Cosentino, de 31 anos, não faz outra coisa com o filho Dante, de 4, desde o lançamento do álbum. “Minha mulher e eu sempre incentivamos a leitura e incluímos os álbuns nos ‘livros’ do Dante, ele adora folhear as edições antigas”, diz Cosentino. “Ele, inclusive, já conhece a maioria das bandeiras dos países por causa disso. Está tão ansioso quanto eu para esta Copa começar, mas ele ainda não tem um jogador favorito, gosta mesmo é quando sai figurinha brilhante.” Em 2018, quando o menino nasceu, o quarto da maternidade virou ponto de troca.

O evidente calor humano em torno das figurinhas naturalmente faria brilhar os olhos e a pena de bons escritores. Não por acaso, os cromos são o pontapé inicial de um clássico da literatura infantojuvenil, O Gênio do Crime, escrito em 1969 por João Carlos Marinho, e que desde então vendeu mais de 1 milhão de exemplares, de geração para geração. Começa assim: “Era um mês de outubro em São Paulo, tempo de flores e dias nem muito quentes, nem muito frios, e a criançada só falava no concurso das figurinhas de futebol. Deu mania, mania forte, dessas que ficam na cabeça da gente e não deixam pensar em mais nada. Quem enchia o álbum ganhava prêmios bons e jogava-se abafa pela cidade: São Paulo estava de cócoras batendo e virando. Batia-se de concha, de mão mole, de quina, com efeito, de mão dura, conforme o tamanho do bolo, o jeito do chão e o personalíssimo estilo de cada um”.

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A trama policialesca do romance começa com a busca desesperada — nas mãos de um cambista, por valor aviltante — de um cromo de Rivellino, difícil de achar. O jornalista Marcelo Duarte, o criador do Guia dos Curiosos, encantado com o livro de Marinho, que atravessou sua pré-adolescência, cismou que um dia iria homenageá-lo. E assim fez, com O Mistério da Figurinha Dourada. “Colar figurinhas no álbum é como um ritual”, diz Duarte. “Meu pai é quem as grudava, com cola Tenaz, porque o álbum rasgava, não era fácil, não era coisa de criança”, lembra. “Depois vieram as colas em bastão e agora as autoadesivas, o que faz toda a diferença.” Pode não parecer, mas colecionar figurinhas tem hierarquia. É assunto sério, seriíssimo. Aliás, tem alguém aí com a figurinha extra, dourada, do Neymar, que andam vendendo pela internet por exagerados 9 000 reais?

Publicado em VEJA de 31 de agosto de 2022, edição nº 2804

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