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Olimpíada de Paris: Será que o Sena vira mar?

Se tudo der certo, o rio em torno do qual Paris emergiu abrigará competições olímpicas e se mostrará balneável ao mundo — um legado e tanto

Por Monica Weinberg, de Paris
Atualizado em 26 jul 2024, 13h08 - Publicado em 26 jul 2024, 06h00

Grandes civilizações brotaram às margens de seus rios, uma fonte de alimento e artéria vital para o comércio. Em Paris, o povoado no entorno do Sena, os parisis, lhe atribuía até propriedades mágicas. Quando os romanos entraram em cena, liderados por Júlio César (100 a.C.-44 a.C.), escolheram justamente uma ilha naquelas bandas para construir templos, teatros e uma sede administrativa — a bela Île de la Cité, onde hoje fica a Catedral de Notre-Dame, joia gótica que embeleza a paisagem. Pois esse curso de água que fincou a cidade no mapa geopolítico voltou ao centro dos acontecimentos. Tornar La Seine (sempre no feminino em francês) balneável, à custa de um investimento de 1,4 bilhão de euros, é a grande aposta de legado da Olimpíada parisiense, que vai de sexta-feira 26 a 11 de agosto.

Todas as atenções estão voltadas para o rio, que num ato inédito foi cercado de grades para a cerimônia de abertura e, se o roteiro não desandar, também receberá os atletas do triatlo e da maratona aquática, um feito e tanto. Nos Jogos que a Cidade Luz sediou em 1900, os nadadores duelaram ali em meio à imundície e, em 1924, ele já estava interditado para banho havia um ano. Nesta edição, a cada dia de prova, amostras serão colhidas para aferir a qualidade da água e saber se está propícia às braçadas — um suspense que enche os organizadores de aflição, mas, em um horizonte mais dilatado, pode significar uma virada histórica para um cartão-postal que chegou a ser dado como “biologicamente morto”. “O que alcançamos até agora é muito bom e suficiente para abrigar as competições”, garantiu a VEJA o vice-prefeito Pierre Rabadan, tentando dissolver o ceticismo que paira no ar. “Cair aí, não sei não”, dizia o arquiteto Olivier Berny, 45 anos, que reconhece precisar de um tempo para se habituar com a ideia.

Neste momento em que os ânimos franceses andam particularmente exaltados na arena política, o rio que fatia a cidade virou cenário para uma disputa por holofotes. Primeiro, foi a ministra dos Esportes, Amélie Oudéa-Castéra, que saltou por lá, num gesto de bravura revestido da intenção de mostrar ao mundo que La Seine estava apta ao banho. “Eu, como parisiense, jamais me imaginei pulando no Sena. Foi daquelas emoções fortes, que ficam com você”, contou a ministra a VEJA. No Hôtel de Ville, a sede da prefeitura, a pressão recaiu sobre Anne Hidalgo, a alcaide que havia adiado o mergulho, mas logo apressou-se em dar o seu pulo. Aí foi a vez de o presidente Emmanuel Macron reiterar que também vai exibir seus dotes para a natação. “É 100% certo que ele vai mergulhar, falta ver a agenda”, garantiu a ministra Amélie, em cerimônia no Palácio Élysée, a residência presidencial, onde a primeira-dama, Brigitte Macron, se mostrava mais contida: “O Sena não está nos meus planos”, disse, com sorriso largo.

UM MERGULINHO? - O Sena sob a moldura da Torre Eiffel: bilionária operação faxina é uma virada de página
UM MERGULINHO? – O Sena sob a moldura da Torre Eiffel: bilionária operação faxina é uma virada de página (Andre Pain/EFE)

Mirando os Jogos, nos últimos anos foi implantada uma operação faxina no rio que serpenteia Paris, um trabalho de engenharia complexo que já fez a qualidade da água melhorar consideravelmente. Uma peça-chave foi a construção de um megarreservatório que, quando chove torrencialmente, tem capacidade para armazenar o equivalente a vinte piscinas olímpicas. Antes, o aguaceiro desembocava direto no pobre Sena, carregando consigo uma enxurrada de sujeira, uma vez que o antiquado sistema de esgotos da capital francesa não consegue absorvê-la. O supertanque, que alojado no subsolo felizmente não se avista, se soma à outra medida essencial — a regularização de 75% das ligações clandestinas (sim, eles também têm) encontradas aos montes nesse e em vários outros rios que se conectam a ele ao longo de seu trajeto de 776 quilômetros, da Borgonha ao Canal da Mancha.

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A limpeza do Sena é uma daquelas novelas arrastadas, que até lembram a saga da Baía de Guanabara, que nos Jogos cariocas se planejava sanear, sem sucesso. Ao remodelar Paris, no século XIX, o polêmico Barão Haussmann pôs de pé um sistema baseado em uma única tubulação, que conduzia os detritos dos apartamentos ao rio. Aí, quando a industrialização veio com tudo, aquelas águas se transformaram num lixão a céu aberto. É espantoso que, até 1970, Paris não possuísse nem esgoto tratado. Apenas dez anos mais tarde começaram as iniciativas para equacionar o enrosco que sempre atormentou os locais. O então prefeito Jacques Chirac chegou a prometer, em meio a um pacote pró-despoluição, que não demoraria a fazer natação naquelas águas. Não deu.

Passadas três décadas, o rio está, enfim, transformado. O plano é que, em 2025, os parisienses possam finalmente deixar a orla, que nestes dias de verão ganha uma área de lazer batizada de Paris Plages (não é bem praia, mas tudo bem), e mergulhar em certos trechos. Como se vê, muita água já rolou, mas os especialistas dizem que o sistema contém uma fragilidade difícil de combater num centro urbano tão antigo e adensado. “O ideal é que haja duas redes coletoras, uma para as águas pluviais, outra para o esgoto, para que não se misturem, o que falta a Paris”, explica o químico José Marcus Godoy, da PUC-Rio, à frente de um laboratório de análises de água.

Se chove além da conta, o novo reservatório não consegue absorver tudo, e a lambança subterrânea pode resultar na situação que se observou na Cidade Luz não faz muito tempo — o Sena ficou impróprio para banho, apavorando a turma olímpica. Há ainda trabalho pela frente, mas a prefeita Anne Hidalgo, que tem em La Seine uma bandeira, afirma, aproveitando para cutucar os ingleses, um dos esportes nacionais: “O Sena já está melhor que o Rio Tâmisa, em Londres”. Agora, é torcer para que a meteorologia conspire a favor da festa.

Publicado em VEJA de 26 de julho de 2024, edição nº 2903

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