Em 2012, a União das Associações Europeias de Futebol (Uefa) criou um conjunto de regras que impedia os clubes de gastar mais do que arrecadavam. A ideia do chamado “fair play financeiro” era evitar que investimentos imediatistas e a gastança desenfreada produzissem campeões da noite para o dia mediante alto — e, às vezes, impagável — custo financeiro. O fair play também tinha como premissa coibir desequilíbrios e dificultar a ação de bilionários que usassem o futebol como instrumento de lavagem de dinheiro. Apesar da boa iniciativa, as caneladas extracampo persistem.
Quando o sistema entrou em vigor, diversos clubes foram punidos com a perda de pontos, multas e até rebaixamento. Isso, contudo, não impediu que alguns protagonistas do futebol europeu continuassem a praticar o jogo sujo, ignorando as normas ou usando meios questionáveis para driblá-las. Nas últimas semanas, uma série de denúncias colocou sob suspeita o time inglês Manchester City. Desde 2008, quando o clube foi comprado pelo xeique Mansour Al Nahyan, dos Emirados Árabes Unidos, os Citizens venceram seis títulos da Premier League, seis Copas da Liga e duas Copas da Inglaterra. Como isso foi possível? A resposta é óbvia: dinheiro.
Na primeira temporada sob o comando de Al Nahyan, as receitas do time eram de 140 milhões de dólares. Agora, aproximam-se dos 800 milhões de dólares. Para os dirigentes da Premier League, o City violou mais de 100 regulamentos financeiros ao longo de nove anos de competições. Além de não cumprir as regras do fair play, o clube não forneceu informações precisas de suas movimentações financeiras e omitiu a remuneração do atual técnico da seleção italiana, Roberto Mancini, que treinou o clube de 2009 a 2013. A depender do andamento das investigações, as sanções poderão resultar até na expulsão do time da liga inglesa. Na Europa, tradicionais clubes como Juventus — reincidente em episódios de mau uso dos recursos — e PSG, da França, também estão enrolados com a Justiça.
O cerco dos europeus aos desmandos sugere um debate: como ficaria o futebol brasileiro se as mesmas regras fossem aplicadas por aqui? Em 2021, o país sancionou a lei da Sociedade Anônima de Futebol (SAF), que pode ser uma boa saída para os times com problemas financeiros. Ainda assim, há certa confusão quando empresas privadas se envolvem na gestão dos clubes. Dono do segundo maior faturamento do futebol no Brasil, o Palmeiras deve boa parte de sua recente predominância nacional à Crefisa, uma instituição financeira. “É um caso similar ao do City”, diz Amir Somoggi, dono da consultoria de marketing esportivo Sports Value. “Os patrocínios foram inflados pela empresa que pertence à presidente do clube.”
A Confederação Brasileira de Futebol observa de perto as movimentações na Europa. De acordo com Manoel Flores, ex-diretor de competições da entidade e um dos idealizadores do projeto Licenciamento de Clubes — que prevê o cumprimento de critérios financeiros para que os times possam disputar as diversas séries —, a crise trazida pela Covid-19 atrasou os debates no Brasil. “As discussões pararam por causa da pandemia e do impacto nas receitas dos clubes”, diz. Enquanto isso, as mazelas nacionais persistem. Uma operação deflagrada pelo Ministério Público de Goiás identificou um esquema de manipulação de resultados, liderado por casas esportivas, em três jogos da rodada final da Série B do Campeonato Brasileiro de 2022. Práticas como essas encontram campo livre para prosperar porque não há regras claras que levem à punição de clubes indiferentes à boa gestão. É hora de chutar essa turma para bem longe dos gramados.
Publicado em VEJA de 22 de fevereiro de 2023, edição nº 2829