Não é preciso muita criatividade para imaginar o livreiro Jérôme Callais como um personagem extraído dos livros de aventuras de Asterix – O Gaulês. Cabelos e barba dourados, os fios desgrenhados. O olhar entre a simpatia e a ironia. Callais, de 59 anos, é presidente da Associação Cultural dos Bouquinistes de Paris. Os bouquinistes são uma instituição de mais de 400 anos da cidade – a fila de sebos ao ar livre (são 900 ao longo das margens do Sena) conta séculos de história da civilização, tão queridos como a Notre Dame e a Torre Eiffel. No ano passado, por exigência das autoridades de segurança, foi decidido que nos dias anteriores à cerimônia de abertura da Olimpíada, ao longo de seis quilômetros do mais conhecido dos rios, eles seriam tirados do chão de pedra. Reclamaram, foram à justiça, conseguiram 180 000 assinaturas em abaixo-assinado e, enfim, venceram a parada. Em fevereiro deste ano, o presidente Emmanuel Macron assinou um decreto anunciando a permanência dos vendedores de livros, revistas, quadrinhos, postais e um imenso etc. Sabe-se, agora que os Jogos vão começar com a mais inusitada das festas, que foi vitória de pirro, era conversa para boi dormir.
Os bouquinistes poderiam ficar lá onde sempre estiveram, mas para quê? Os turistas não podem ser aproximar, a não ser que tenham QR Codes que autorizem a entrada no chamando cinturão cinza, de controle máximo. As grades impedem o acesso. Sem pessoas a circular, para que manter as bancas em funcionamento? Callais ri de uma ilação: ele e seus pares são como a Gália do Asterix cercada pelos romanos – ops, cercada pelos dirigentes do Comitê Olímpico Internacional, pelos organizadores dos Jogos, por Macron ansioso por ser o Rei-Sol de nosso tempo, em caminho que ele mesmo boicotou ao dissolver a Assembleia dos Deputados e mergulhar a França em caos político. “Isso mesmo, somos como o Astérix”, disse a VEJA.
“Deixar de ler é perigoso”
Mas o mandão Macron ainda quer fazer da Olimpíada uma vitrine – e os bouquinistes, irritados, jogam pedra no vidro. “Nos ofereceram um passe para poder acessar a calçada onde fica minha banca, mas preferi um bilhete de avião”, diz Callais. Fez as malas, saiu fora e só pretende voltar no domingo, 28, para reabrir seu negócio no Quai Conti, em frente à rua Guenegaud, na Rive Gauche. Ele duvida, contudo, que haverá tempo para liberar toda a circulação. E dado os preços abusivos dos hotéis e do transporte (o metrô dobrou de preço) ele não acredita que os visitantes ponham a mão no bolso para comprar livros, nem mesmo Astérix nos Jogos Olímpicos, clássico adequado aos dias de hoje.
Resta uma paisagem triste, ao avesso do frenesi que antecipa a cerimônia desta noite em Paris, entre a Ponte de Austerlitz e o Trocadéro, diante da Torre Eiffel. Os quiosques verdes fechados remetem aos dias de pânico da pandemia, forçados a receber cadeados. “Mas voltaremos”, anuncia Callais, sem temer que o céu lhe caia sobre a cabeça. Vale a lembrança de uma das placas brincalhonas que ele costuma exibir numa das prateleiras: “Deixar de ler é perigoso”.