Salvador da pátria? Os desafios de Carlo Ancelotti, novo técnico da seleção
Ele terá de fazer bom um time sem grandes craques e driblar a bagunça da CBF

Houve um tempo, quando o Brasil abandonou um certo “complexo de vira-latas”, como sugeriu o dramaturgo e cronista Nelson Rodrigues, para então vencer a Copa de 1958, em que o mundo inteiro se espantou com a beleza e a alegria do futebol moleque de Didi, Pelé, Garrincha e cia. A realidade era outra, é verdade, sem televisão ou internet, e apenas pelas inventivas narrações pelo rádio sabíamos com quem andava a bola. A canarinho virou peça de fascínio. De onde saíra aquela turma endiabrada? Quase setenta anos depois, e com cinco títulos mundiais no meio do caminho, a roda andou para trás — e, como vira-lata, tivemos de buscar um treinador europeu, o italiano Carlo Ancelotti, 65 anos, para salvar a pátria.
Nada contra estrangeiros, ao contrário — e precisamos mesmo do conhecimento de esquemas de jogo, da organização dentro de campo que sobra em partidas da Europa. Ter um vencedor à margem do gramado (Ancelotti ganhou cinco vezes a Champions League como treinador) é sempre bom. Ele não fala português, mas há anos lida (e bem) com jogadores brasileiros. Tem tudo para dar certo, na arrancada final das Eliminatórias, com a seleção em amargo quarto lugar, e mesmo em 2026, no Mundial que será realizado simultaneamente nos Estados Unidos, no México e no Canadá. Mas tem também tudo para dar errado, porque só há uma resposta possível, uma única aposta: o hexa. É ele ou nada. “Agradeço a paciência e o entusiasmo de nossos torcedores”, disse o presidente da CBF, Ednaldo Rodrigues, em vídeo, e sabe-se lá onde ele viu paciência e entusiasmo.

O problema não é Ancelotti, que foi excelente volante, em fenomenal dupla com Falcão no tempo da Roma — o rolo é o que o espera ao redor, e não é pouca coisa. Rodrigues está cai não cai, envolvido em duas acusações levadas ao conselho de ética da CBF. A primeira denúncia gira em torno da possível falsificação de assinatura de um ex-presidente da entidade, em acordo judicial que garantiu a continuidade do cartola no cargo em 2023. A outra pendenga envolve suposto uso indevido de verbas para custear viagens pessoais. O líder do fogo amigo é um dos vice-presidentes da CBF, Fernando Sarney. Até a quinta-feira 15, Rodrigues permanecia na cadeira — mas ameaçado de afastamento. “E se o Ednaldo cair, o Ancelotti fica ou vai embora?”, indagou o narrador Galvão Bueno em seu programa semanal na Band.
Em meio ao caos, a camisa amarela já não mete medo em ninguém como no passado, vem de vexames recentes como a derrota por 4 a 1 contra a Argentina e há permanente pressão para a volta de Neymar na falta de outras grandes lideranças técnicas. O italiano receberá o equivalente a 5 milhões de reais por mês, mais ou menos o que ganhava no Real Madrid, mas nem tanto dinheiro assim conseguirá mover montanhas. Por saber do estado das coisas, Ancelotti decidiu morar pelas bandas de cá, e não na Inglaterra, como chegou a ser ventilado. Ofereceram-lhe Leblon ou Ipanema, no Rio, “por ter ares mais europeus”, mas decidiram por um condomínio na Barra da Tijuca, por questão de segurança. “Ancelotti é ótimo treinador, ótima pessoa, sabe organizar muito bem um time, mas tem uma diferença enorme entre treinar clubes e seleções”, diz o comentarista e ex-jogador Casagrande.

Ancelotti, que era para ser o marco de um novo tempo — e tomara ser assim, lá na frente —, é uma espécie de sinal dos tempos nebulosos. A pressa de contratá-lo a qualquer custo ocorreu para gerar uma agenda positiva a Ednaldo e tentar desviar a pressão que recai sobre ele. Em entrevista coletiva a jornalistas espanhóis, o novo técnico da seleção achou estranho a notícia ter saído no Brasil antes mesmo de fechar a temporada no Real Madrid. “Falo porque a CBF fez esse comunicado. É oficial que a partir de 26 de maio serei o treinador do Brasil”, disse. O italiano será o quarto estrangeiro a comandar a seleção canarinho, o primeiro desde 1965 — os outros foram o uruguaio Ramón Platero, o português Joreca e o argentino Filpo Núñez, os três com passagens-relâmpago.
Para além da bagunça fora dos campos, estrelada pela atual gestão da CBF, há problemas a serem enfrentados dentro dos gramados por Ancelotti. A atual safra de boleiros reúne bons jogadores, mas não craques do nível de estrelas da geração do penta, como Ronaldo Fenômeno, Ronaldinho Gaúcho e Rivaldo. Ainda que boa parte dos atuais selecionáveis atue na Europa, onde a disciplina tática é uma regra, será um desafio criar a tempo para a próxima Copa um time capaz de combinar o estilo ofensivo brasileiro com a expertise italiana na organização defensiva. Ancelotti terá trabalho. Para isso, como gênio, precisará evocar o seu nome do meio — Michelangelo — de modo a redesenhar o futebol que já foi o melhor do mundo e desde 2002 não ergue taça relevante. Habemus treinador, fato que deve ser celebrado — mas não basta. Será preciso persistência. Tomara que a banda da CBF não desafine a música e o deixe trabalhar.
Colaborou Natalia Tiemi Hanada
Publicado em VEJA de 16 de maio de 2025, edição nº 2944