Stephen Curry usa a estatística para aprimorar as cestas de 3 pontos
O ala-armador do Golden State Warriors aplica um trabalho minucioso na missão de bater recorde atrás de recorde na NBA
Ele arremessa sem marcação, e chuá. Dribla um adversário, e chuá. Dá um passinho para trás, e chuá. De lado, em ângulo improvável, e chuá. Dá uma freada brusca, e… chuá, chuá, chuá. Stephen Curry, o ala-armador do Golden State Warriors, se tornou, há poucos dias, o maior marcador da história da NBA em cestas de 3 ao longo da temporada regular e dos play-offs. Na recente vitória contra o Chicago Bulls, ultrapassou os 3 358 pontos do aposentado Ray Allen (que jogou entre 1993 e 2014), chegou a 3 366 e contando. Considerando apenas os jogos antes do mata-mata, Allen ainda lidera, mas perderá o trono até o fim de 2021. A sinfonia de músculos, velocidade e coordenação motora do atleta de 33 anos — eleito o melhor jogador das temporadas de 2015 e 2016 — talvez seja hoje o mais belo capítulo do esporte, em qualquer modalidade. É uma diversão vê-lo, inigualável deleite estético.
Há uma outra beleza no extraordinário desempenho esportivo de Curry — como se fosse João Gilberto na busca pelo acorde perfeito e o timbre exato, ele decidiu atrelar sua especialidade aos recursos de biomecânica e probabilidade. Misturou basquete com estatística para ir ao infinito e além. Curry e seu treinador pessoal de alta performance, o obcecado Brandon Payne, decidiram beber de fonte insólita: um levantamento estatístico da americana Rachel Marty Pyke, premiada pesquisadora dedicada ao câncer que, tendo sido armadora de basquete, estudou mais de 20 milhões de arremessos de modo a encontrar um padrão. Em seu levantamento, Pyke usou recursos de análise de algoritmo desenvolvidos pela Nasa. A descoberta soa um tanto evidente: quanto mais no centro do aro a bola cair, maiores são as chances de acerto (veja no quadro). É nada óbvio, porém, um craque como Curry se debruçar no trabalho acadêmico. Se 79% das bolas entram lindamente ao acertar o centro do alvo e a taxa de sucesso cai para 60,9% 10 centímetros à direita ou 62,8% à esquerda da mosca, que tal um esforço suplementar? Um pouquinho para cá, um pouquinho para lá, não faz diferença. “Mas quando você chega a 15 centímetros, é como cair de um penhasco”, diz John Carter, CEO da Noah Basketball, empresa de tecnologia de rastreamento de arremessos que ajudou Pyke no levantamento.
A partir de filmagens depois compiladas em um programa de computador, todos — todos! — os arremessos de Curry nos treinamentos são dissecados. Há análise da parábola desenhada pela bola (entre 45 e 50 graus), da velocidade, do movimento das mãos e do exato ponto em que ela atravessa o aro. Se a bola não cai no ponto perfeito, o campeão e seu técnico anotam a tentativa como perdida. Tem de entrar sem resvalar na rede. Curry atira em movimento, atira parado, atira com a respiração ofegante, de modo a reproduzir situação real de jogo. São pelo menos duas horas diárias de esforço. Ele sempre treinou muito, é claro — a novidade, agora, é estar com um olho na quadra e outro nos algoritmos. “É um desafio mental tentar ser o mais perfeito possível”, diz ele. Para Payne, o obstáculo é outro. “Tenho de dizer ao maior arremessador de 3 pontos da história que ele ainda não é bom o suficiente.”
O basquete, dada sua constituição técnica, com quadra pequena e contato permanente dos quintetos, de movimentos rapidíssimos, é a modalidade coletiva mais afeita a absorver avanços de fora da quadra — condição que o torna cada vez mais interessante, imune ao saudosismo. Convém sempre levar, nessa linha de evolução, a ideia do chamado “triângulo ofensivo”, que o treinador Phil Jackson utilizou no Chicago Bulls de Michael Jordan, Scotty Pippen e Dennis Rodman nos anos 1990, e que a série The Last Dance, da Netflix, ilumina com competência. A grosso modo a ideia do triângulo é que sempre que um membro do time está com a bola, pelo menos outros dois se aproximem, ampliando o leque de possibilidades — e, no caso do Bulls, abrindo espaço para ninguém menos do que o maior de todos, o imparável Jordan. Johan Cruyff e seu mais dileto pupilo, Pep Guardiola, aplicaram esse raciocínio no futebol ao desenvolver o toque de bola rápido do Barcelona, o tiki-taka.
É fascinante perceber como o esporte, que parece vir apenas do coração, pode vencer com razão e simplicidade — como intuiu Jackson e como faz agora Curry, ao aperfeiçoar os 3 pontos. Oscar Schmidt, o maior pontuador da história, embora não tenha jogado na NBA, arremessava 1 000 bolas diariamente. “Não existem técnica, segredo ou mecânica ideais para um arremesso de 3”, disse a VEJA. “O segredo para fazê-lo acontecer é um só: treinar e treinar muito, à exaustão.” Para Oscar, o americano faz a coisa certa. “O basquete é, em essência, um jogo matemático, a começar pelo fato de que na cesta cabem exatamente duas bolas, lado a lado”, afirma. “A repetição aumenta as chances de acerto, por isso não me surpreende ele estar usando um método estatístico.” Tivesse o brasileiro os recursos científicos que Curry tem, chegaria a patamares ainda mais elevados. Nada a lamentar — o tempo, na aliança com o conhecimento, só faz bem. E, no esporte, produz personagens espetaculares. E chuá, com 79% de certeza.
Publicado em VEJA de 1 de dezembro de 2021, edição nº 2766