“Eu não preciso dizer mais nada! Vocês vão ter que me engolir!” Antes da Copa do Mundo de 1998, Zagallo ouvia barbaridades da imprensa e da torcida a respeito da postura da seleção brasileira em campo. Em junho de 1997, ao conquistar o título de Copa América, na vitória contra a Bolívia por 3 a 1, ele disparou com dedo em riste, para as câmeras de televisão, bochechas avermelhadas e olhos rútilos, a frase debochada e incisiva que se tornaria epígrafe irrecorrível do treinador. Talvez seja bom não dizer mais nada, e tanto agora como antes sempre foi preciso engolir Zagallo — não com o tom colérico daquele desabafo, mas com a tranquila certeza histórica a confirmar a trajetória de um dos grandes nomes da história do futebol mundial.
Na ponta do lápis: ele foi duas vezes campeão mundial como jogador, em 1958 e 1962; uma vez como treinador, em 1970; e uma como auxiliar técnico, em 1994, de mãos dadas com Carlos Alberto Parreira. Zagallo foi o primeiro a erguer a Jules Rimet como atleta e como técnico, feito que depois o alemão Franz Beckenbauer (leia na pág. 14) e o francês Didier Deschamps repetiriam, sem a mesma pompa e circunstância. A estatística o instalou, e já faz tempo, no panteão da bola — mais celebrado no exterior do que nas bandas de cá, em irritante movimento atávico. Zagallo foi quase sempre tratado como o histriônico dado a comentários de efeito, o frasista engraçado e envelhecido que teve sorte na vida, o supersticioso do número 13, e só por isso teria ido tão longe. Mas não. Zagallo foi revolucionário de chuteiras e com a prancheta em mãos. Discreto, reinventou os esquemas de jogo, viu tudo antes da hora.
Os críticos — todos nós, enfim, e falar mal de Zagallo virou hábito — diziam ser fácil vencer com Didi, Garrincha e Pelé ao lado, no gramado. E que moleza foi sentar no banco, na campanha do tri no México, tendo diante dos olhos o rei, incomparável, claro, mas também Tostão, Gérson e Rivellino. Sim e sim. Mas faça-se um exercício ao avesso: como ganhar relevo, sair da planície, em tempos tão excepcionais? Em 1958, na Suécia, o ponta-esquerda Zagallo intuiu que voltando para ajudar no meio, ofereceria mais segurança para a seleção — e o equilíbrio necessário ao “brilhantismo anárquico” de Garrincha, do lado direito, como definiu o jornalista inglês Jonathan Wilson, autor de A Pirâmide Invertida — A História da Tática no Futebol. E então a montagem clássica, o 4-2-4 (quatro defensores, dois meio-campistas e quatro atacantes) virou um 4-3-3, que passaria então a vigorar internacionalmente. Foi o primeiro e imenso legado do então botafoguense Formiguinha, com era chamado, dada a infindável capacidade de ir e vir, operário da redonda.
Em 1970 ele herdou as “feras do Saldanha”, o escrete fenomenal nas anotações, mas inviável na prática, dada a impossibilidade de ter tanta gente boa ao mesmo tempo. A memória engana, mas o Brasil embarcou para o México vaiado e debaixo de desconfiança. E então Zagallo, vindo do Botafogo, perpetrou uma segunda reviravolta — antes de Cruijff, antes de Guardiola. A mágica: pôs no time os gênios — Pelé, Tostão, Gérson e Rivellino, de posições semelhantes em seus clubes —, e não foi mera distribuição de camisas, “joguem aí”, como anota o folclore. Ele sabia o que estava fazendo, calmo e reflexivo. Tirou Edu, um fenomenal ponta-esquerda agressivo, e instalou o armador canhoto Rivellino. Deslocou um volante, o mineiro Piazza, para a zaga — a melhor maneira de uma equipe sair jogando com precisão, como aliás intuíra Beckenbauer. Eis o que conta Tostão, que estava lá e sabe das coisas, na Folha de S.Paulo: “Ele me disse bem perto do Mundial: ‘Você será o titular, mas não quero que jogue recuado como faz no Cruzeiro, quero você à frente de Pelé e Jairzinho. Perguntou-me: ‘Dá para jogar dessa maneira? Respondi: ‘Não há problema’ ”.
Se a explicação da relevância de Zagallo soa árida para quem não acompanha os detalhes do esporte, cabe um resumo: tudo o que se vê por aí hoje, na Europa, sobretudo, bebeu um pouquinho do brasileiro. “Zagallo estava à frente do seu tempo e pensava o jogo de maneira estratégica”, diz Tostão. “Fazia treinos táticos diariamente para defesa e ataque. A seleção de 1970 foi espetacular porque unia o coletivo com o individual, como são hoje as melhores equipes.” Mas dada a imprevisibilidade do futebol — a única modalidade em que o mais fraco eventualmente vence o mais forte —, Zagallo foi muitas vezes surpreendido e bebeu do próprio veneno. Na Copa de 1974, antes da partida contra os holandeses do “carrossel”, em permanente troca de posições, ele garantiu: “A Holanda é muito tico-tico no fubá, que nem o América dos anos 50”. Depois da derrota por 2 a 0, corrigiu a prosa: “Aí, sim, fomos surpreendidos novamente”.
Uma surpresa atrás da outra, boas e más, eis um modo de desenhar a longa carreira de Zagallo, o “Velho Lobo”. Ao morrer em 5 de janeiro, aos 92 anos, de falência de múltiplos órgãos, no Rio de Janeiro, é como se — agora sim — chegasse a hora de reverenciar o segundo maior nome do futebol do Brasil, atrás apenas de Pelé. Com a morte de ambos, a apenas um ano de distância no tempo, pode-se enfim virar a página dos pioneiros de 1958 — “O brasileiro, lá no estrangeiro, mostrou o futebol como é que é”, informa a marchinha. Todos os titulares da primeira Copa já morreram. É o fim de um tempo que Zagallo ajudou a inaugurar. Com uma nota irônica: o nome do novo treinador da seleção, Dorival Júnior, ex-São Paulo, foi anunciado minutos depois do enterro do alagoano. O atual caos da CBF, com vaivém de presidentes e técnicos, não era, certamente, o ponto ao qual o Formiguinha imaginava chegar. O melhor a fazer: engoli-lo, simples assim, e, ao modo antropofágico dos poetas do modernismo, fazer nascer algo novo.
Publicado em VEJA de 12 de janeiro de 2024, edição nº 2875