A Bola de Ouro, prêmio concedido pela revista France Football desde 1956, é a mais prestigiada láurea do esporte de Pelé — a Fifa também criou um troféu, o The Best, que ainda briga para ganhar relevo ante a história de mais de sessenta anos da criação francesa original. A edição de 2024 do evento, cujos vencedores foram anunciados na segunda-feira 28, começou com um papelão — os cartolas do Real Madrid, ao descobrirem previamente que nenhum de seus jogadores venceria a disputa, cancelaram o embarque para Paris, na última hora, com os bilhetes já comprados e presença confirmada, como se houvesse algum complô contra a equipe merengue, vencedora da Liga dos Campeões da temporada de 2023/2024.
Foi uma descortesia com a organização da festa e também com o treinador Carlo Ancelotti, que seria escolhido como o melhor, e portanto não pôde subir ao palco. Não demorou para que as redes sociais, onde os palpites pululam sem discernimento, batessem tambor em torno da suposta motivação para o forfait madrileño: desrespeito com a clássica agremiação, especialmente pelo fato de nenhuma de suas duas maiores estrelas —Vinicius Jr. e o inglês Jude Bellingham — estarem no topo do pódio. O vencedor, soube-se depois, seria o espanhol Rodri, hoje no Manchester City, formado profissionalmente pela base do Atlético de Madri. Alegou-se, como motivo central de toda a confusão, uma suposta postura racista contra o brasileiro. Vinicius Jr. ficou com a segunda colocação, à frente de Bellingham, o terceiro.
Não há como pôr a mão no fogo por nenhum dos 100 jornalistas do colégio eleitoral da France Football — e ao menos um deles, de El Salvador, deixou Vinicius Jr. de fora dos dez primeiros. Não se trata de asseverar que sejam todos ímpios e corretos, a fina flor da honestidade e correção moral, mas o caminho contrário também seria um chute para fora. É difícil, para não dizer impossível, afirmar que o veredicto tenha bebido do preconceito de cor, e ponto. Para começo de conversa: o meio-campista Rodri é extraordinário, inigualável na condução de bola e visão de jogo. Compará-lo, na frieza da estatística, com o atacante formado pelo Flamengo é didático e não revela nenhum absurdo. O craque do City fez 63 partidas, com doze gols e catorze passes decisivos para o tento. O craque do Real jogou 49 vezes, com 26 gols e onze assistências. Rodri ganhou a Premier League, a SuperCopa da Europa, o Mundial de Clubes da Fifa e a Eurocopa com a camisa da Fúria. Vinicius Jr. abocanhou o campeonato espanhol, a SuperCopa da Espanha e a Liga dos Campeões — fracassou apenas na seleção brasileira, com atuações modestas. Resumo da ópera: poderia ser Rodri, poderia ser Vinicius Jr. — inclusive Bellingham. A pequena distância de desempenho não autoriza, portanto, imaginar votos intolerantes. “Obviamente, Vinicius Jr. sofreu matematicamente com a presença de Bellingham e também de Dani Carvajal entre os favoritos no top five, porque os votos foram diluídos”, disse Vincent Garcia, editor-chefe da France Football.
Há um outro modo de enxergar a decepção em torno de Vinicius Jr., e ele tende a ser muito mais produtivo no combate à infâmia do preconceito. Cabe instalar o atacante — ao menos por ora, até que desponte novamente como favorito para a Bola de Ouro do ano que vem, dada a velocidade e a vontade de estufar a rede — em lugar nobilíssimo, de extraordinário relevo: o da luta contra o racismo. Não há, na história do futebol, um jogador que tenha desempenhado papel com destaque equivalente, em luta fundamental e inegociável. Pelé não fez isso. Ronaldinho Gaúcho não teve postura de mesma dimensão. Não seria exagero imaginar que, lá na frente, os gestos de Vinicius Jr. ecoem no futebol e vizinhanças como a de Muhammad Ali no boxe e além das quatro cordas.
Logo depois da premiação, Vinicius Jr. foi às redes sociais e postou uma mensagem um tanto enigmática — “Eu farei 10x se for preciso. Eles não estão preparados”. As palavras foram traduzidas como grita contra a derrota na Bola de Ouro, e ele tem todo o direito de bater o tambor, por sentir-se incomodado. O correto, contudo, seria apartar o desabafo da premiação, descolando a ilação de causa e efeito, para ficar apenas com o que Vinicius Jr. estampou: tomara, sim, que ele continue a esbravejar, dez, vinte vezes mais, contra o crime do racismo, de que é vítima em sucessivos momentos, dentro e fora dos gramados. A voz do atacante — com ou seu a alcunha de número 1 do mundo — é fundamental e inegociável. É corajosa. Na véspera da festança em Paris, aliás, depois da derrota do Real por 4 a 0 para o arquirrival Barcelona, houve inaceitável estupidez dos torcedores. Vinicius Jr. não teve dúvida e postou no X: “Lamentável o que aconteceu ontem no Bernabéu com insultos racistas. Não há espaço para esses criminosos em nossa sociedade”. Vinicius Jr. não pode ser calado. Se levará ou não o troféu, um dia, é detalhe. Pouco importa. Seria bom e, quem sabe, merecido em futuro próximo. O último brasileiro a brilhar mais do que todos foi Kaká, em 2007.
Publicado em VEJA de 1º de novembro de 2024, edição nº 2917