Geada severa na França afeta produção de vinícolas seculares
Negócios espalhados pelo país foram atingidos, com graves prejuízos à safra atual
O que parece ser uma cerimônia noturna de celebração da natureza, com um desfile de tochas acesas a perder de vista, retratada na fotografia acima, é na verdade um grito de socorro. O fogo serve para aumentar a temperatura do solo e a fumaça, ao amanhecer, funciona como um escudo contra a luz solar, de modo a evitar que as plantas congeladas queimem na alvorada. A imagem foi feita numa plantação de uvas da cidade de Chablis, na Borgonha francesa, referência mundial na produção de brancos feitos com a casta chardonnay, e virou a triste face de uma temporada trágica para o campo na França.
Para muito além da Borgonha, outras regiões como Bordeaux, Vale do Rhône, Vale do Loire, Provença e Champagne, viníferas seculares, foram maltratadas no início de abril por geada ao longo de três noites consecutivas, com temperatura de 4,9 graus negativos — surpreendente para esta época do ano. “É um dos piores desastres naturais das últimas décadas e terá grandes consequências para o mercado e a cultura da bebida no mundo”, diz François Buan, especialista em vinhos e proprietário de uma tradicional cave em Rennes, na Bretanha.
Calcula-se, por enquanto, uma perda de até 80% na produção de uvas. Os vinhos seriam comercializados, em sua maioria, a partir de dois anos depois de setembro, o mês da colheita. É, portanto, dano no presente que ecoará por longa temporada. Rótulos míticos como o Château Angelus (Bordeaux), Romanée-Conti (Borgonha) e Dom Pérignon (Champagne) poderão ter as produções encolhidas. Pressionado, o governo francês ativou o chamado programa de auxílio contra calamidade agrícola e deve implementar medidas como a redução de impostos e ajuda financeira aos produtores. O prejuízo estimado pelas autoridades gira em torno de 2 bilhões de euros. Na ponta final, a do consumidor, os preços das garrafas que conseguirem chegar às prateleiras e caves devem ser 50% mais altos. “É um desastre”, resumiu Julien Denormandie, ministro da Agricultura da França, ao modo hiperbólico do representante de um país que aparece entre os três maiores produtores mundiais de vinho, ao lado de Itália e Espanha.
Não é a primeira vez que a França atravessa período de danos drásticos como o deste 2021 pandêmico. Fenômenos semelhantes ocorreram em 1981 e em 2017, mas não tão agressivamente. Para uma legião de produtores franceses, que defendem seus terroirs como Asterix e Obelix protegem a Gália nos quadrinhos, a meteorologia e o controle de ervas e insetos daninhos não são apenas ciência — são sinônimo de memória. Os desastres marcam o tempo amargo nos calendários, ditam o ritmo de dores e alegrias. O estrago atual só perde para a destruição ocorrida em meados do século XIX, quando uma praga, a filoxera, dizimou imensas porções de vinhas. Embora comuns na França, as geadas se transformam em pesadelo dos vinicultores quando ocorrem na primavera — como aconteceu agora. É nessa época do ano, quando a temperatura começa a subir, que despontam as gemas das videiras, as estruturas que darão lugar aos cachos. A planta em si não corre riscos, mas a probabilidade de brotarem frutos das gemas congeladas nessa fase de desenvolvimento cai violentamente.
A geada de 2021 ganhou gravidade porque poucas semanas antes o país passara por uma onda de calor igualmente inesperada para essa época do ano, com termômetros marcando mais de 20 graus, o que estimulou ainda mais o florescimento das videiras. As uvas brancas foram as mais prejudicadas, porque amadurecem mais precocemente que as uvas tintas. Por isso há tanto drama ao redor de Chablis. Dias melhores virão, evidentemente, mas convém prestar atenção no que acontece nas regiões de vinicultura do hexágono francês, não apenas pelos danos econômicos, terríveis, mas pelo risco de a quebra da safra subtrair taças de prazer da civilização. Porque, como escreveu o advogado e cozinheiro Jean Anthelme Brillat-Savarin (1755-1826), epicurista e gastrônomo da primeira linhagem, “o borgonha faz você pensar bobagens, o bordeaux faz você falar bobagens e o champanhe faz você fazer bobagens”. O que seria de nós sem eles?
Publicado em VEJA de 28 de abril de 2021, edição nº 2735