Novo estudo revela o impacto das mudanças climáticas na produção de vinhos
Regiões tradicionais devem sofrer com o fenômeno, mas oportunidades podem surgir em outros países
O vinho é arte e ciência. Muitos fatores afetam a qualidade e o sabor de uma safra: as uvas utilizadas, a maneira como se lida com elas e o repouso do líquido sagrado durante meses — ou não — em barricas de carvalho. Mas nada funcionaria, nada mesmo, sem o conhecimento da geografia, o domínio ao menos mínimo do que a natureza entrega. Há uma faixa entre 30 e 50 graus de latitude, dos dois lados da linha do Equador, tida como ideal. Nessas zonas, há um equilíbrio delicado entre a incidência de luz do sol, a temperatura e a quantidade adequada de chuva. Não à toa, ao norte, é nessa franja que estão França, Espanha, Itália e Portugal, na Europa, e a Califórnia, nos Estados Unidos. São países de grande tradição. Ao sul, é onde despontam Uruguai, Chile, Argentina e África do Sul, os melhores produtores do chamado Novo Mundo.
Pode-se tratar esse desenho como regra, o mapa-múndi que há séculos emoldura a viticultura. A surpresa, ou o susto: as mudanças climáticas podem reinventar a roda das videiras, levando a decadência a algumas regiões hoje celebradas e a ascensão a territórios agora desdenhados. Um estudo de fôlego publicado na revista Nature aponta as consequências, no futuro, das extremas variações de termômetro, precipitação, umidade, radiação e CO2. “Cerca de 90% das regiões vinícolas tradicionais nas regiões costeiras e baixas de Espanha, Itália, Grécia e do sul da Califórnia correm o risco de desaparecer até o final do século devido à seca excessiva e às ondas de calor mais frequentes com as alterações climáticas”, aponta o time de pesquisadores (veja no mapa). Em um cenário mais conservador, em que a temperatura global subirá no máximo 2 graus, algumas áreas manterão a produção. Um aumento de 2 a 4 graus, no entanto, pode afetar de 49% a 70% de todas as plantações já conhecidas. “A marca do aquecimento global é a irregularidade”, diz Joana Maçanita, enóloga que trabalha na região do Douro, em Portugal. “Antes, colhíamos algumas uvas no final de setembro. Agora, elas já estão maduras no fim de agosto.” Não é preciso ir longe. Basta lembrar das geadas precoces que devastaram Chablis, na França, em 2022.
As transformações são inevitáveis, mas nem todas são negativas. As mudanças climáticas devem favorecer o desenvolvimento de novas regiões vitivinícolas. É o caso da Dinamarca ou de áreas no sul do Canadá, atualmente consideradas muito frias para a produção de bons vinhos. Em outros países, onde já existem vinhedos com variedades adaptadas ao frio, como a Alemanha e a Inglaterra, há expectativa de que o aumento na temperatura favoreça a qualidade da bebida. “Produtores que foram muito famosos podem não continuar tão famosos. E produtores não tão conhecidos hoje em dia podem começar a ser em breve”, resume o chileno Pedro Parra, especialista em terroir e consultor de vinícolas ao redor do mundo. O Brasil tende a ficar no meio do caminho, sem grandes danos ou belos saltos.
De qualquer maneira, será preciso se adaptar, com novas práticas agrícolas, mais eficientes, mas também mais caras. Em alguns casos, mesmo que seja tecnicamente possível produzir sob as novas condições de clima, o custo inviabilizaria a operação comercial. E, mesmo assim, o sabor do vinho seria diferente. O estudo aponta que até o perfil do aroma de fruta dos grandes rótulos pode mudar ao cabo do século XXI. Em vez de frescor de cereja fresca, por exemplo, a percepção será de compota. Talvez seja melhor começar a guardar algumas garrafas na adega, lembrança do que bebemos hoje em dia. Não é má ideia.
Publicado em VEJA de 5 de abril de 2024, edição nº 2887