O uísque mais antigo do mundo vai a leilão
O único exemplar remanescente de um Bourbon de dois séculos, certificado por datação científica, atrai colecionadores pelo seu valor histórico
Costuma-se dizer que o scotch whisky (ou uísque escocês) é o símbolo de requinte e tradição do velho mundo. O bourbon whiskey (da região homônima no estado do Kentucky, nos Estados Unidos) representaria a força selvagem do novo continente — além de ter a letra “e” incorporada ao nome. Ambos são destilados, porém distintos no aroma e no gosto. O bom scotch, feito a partir da cevada maltada, deve ser servido em copo baixo e largo, e degustado aos poucos, sem gelo, como preferem os puristas. Já o bourbon, cujo ingrediente principal é o milho, é como um coice de cavalo e desce bem quando tomado de um gole só, no copinho de 50 mililitros, no estilo chamado “caubói”. No entanto, quando se conhece os dois, como dizer qual deles é o melhor? A resposta é incerta, pois há uma variedade de marcas e formas de envelhecimento. No entanto, se emparelharmos os melhores dos dois estilos, o scotch provavelmente ganhará de goleada: uma só garrafa do escocês The Macallan Fine and Rare 60 Year Old foi arrematada, em 2019, por quase 2 milhões de dólares. Os americanos, no entanto, estão prestes a revidar, levando a leilão o chamado “bourbon de dois séculos” ou, simplesmente, o uísque mais antigo do mundo.
A raridade em questão é uma garrafa do Old Ingledew Whiskey, que vai a leilão on-line de 22 a 30 de junho pela casa especializada Skinner. Os holofotes estão sobre esse raro exemplar não tanto pelo sabor, mas devido à sua antiguidade e, especialmente, relevância histórica. A frente da garrafa é um tanto convencional, com o nome do bourbon e de seu distribuidor, Evans & Ragland, gravados em alto-relevo. No verso, no entanto, está uma pequena nota, em papel manchado pelo tempo e preso com fita adesiva, com uma informação: o Old Ingledew “provavelmente é anterior a 1865, pois as destilarias da Geórgia foram fechadas depois da Guerra Civil”. De fato, a Geórgia, estado sulista derrotado na Guerra de Secessão (1861-1865), recebeu duras sanções da União à época, o que corroboraria o testemunho. Ainda mais surpreendente, contudo, é o restante da nota, datilografada há décadas, que atesta que a garrafa esteve guardada “na adega do sr. John Pierpont Morgan”. A figura citada é ninguém menos que J.P. Morgan, possivelmente o mais influente banqueiro do século XIX, que viveu de 1837 a 1913. Segundo a casa Skinner, haveria apenas três garrafas do Old Ingledew no espólio do milionário, sendo que duas foram presenteadas décadas depois a Franklin Roosevelt e Harry Truman, presidentes líderes da campanha americana na II Guerra. A única remanescente — que está sendo leiloada agora — ficou nas mãos de uma mesma família por três gerações.
Uma vez que vinhos e destilados raros estão à mercê de falsários tanto quanto obras de arte, os leiloeiros decidiram realizar a datação do líquido por carbono 14, método utilizado para estimar a idade de evidências orgânicas. Usando uma agulha e um pequeno frasco, o especialista Joseph Hyman perfurou a rolha, extraiu algumas gotas e as enviou para a análise da Universidade da Geórgia e ratificação da Universidade de Glasgow. Se fosse confirmada a data de fabricação entre 1860 e 1865, o exemplar entraria na lista dos mais velhos destilados existentes, mas não o mais antigo arrematado. Isso porque esse título já pertence ao Glenavon Special Liqueur Whisky, um escocês engarrafado entre 1851 e 1858 e que foi vendido em 2006 por 18 000 dólares. Além disso, segundo o livro dos recordes Guinness, o atual campeão está em posse de um colecionador: uma garrafa do Baker’s Pure Rye Whiskey, exemplar americano destilado em 1847. Portanto, Hyman foi, de certa forma, pego de surpresa quando recebeu o relatório atestando, com 81% de possibilidade de acerto, que o Old Ingledew foi fabricado entre 1763 e 1803 — o que o traz para um período ainda mais importante da história americana: a guerra da independência, oficializada na declaração de 1776.
Mesmo firmado como o mais antigo, é improvável que o Old Ingledew receba lances superiores a 40 000 dólares. Não se sabe o gosto que tem, nem mesmo se ainda pode ser consumido — apesar de bourbons fechados poderem durar indefinidamente. A recompensa para quem o arrematar talvez seja seu significado. O velho uísque da Geórgia não tem o valor de um Macallan e muito menos do quadro da Vênus de Botticelli, mas chegou inteiro ao século XXI, e tem uma fascinante história para contar.
Os atuais campeões
O destilado mais antigo e o mais caro arrematados em leilão
Glenavon Special
Ano: 1851-1858
Preço: 18 000 dólares
Não passou por datação, portanto não se sabe ao certo quando foi produzido, mas o engarrafamento ocorreu há mais de 150 anos
Macallan Fine and Rare
Ano: 1986
Preço: 1,9 milhão de dólares
Destilado em 1926, o líquido envelheceu em um único barril por sessenta anos. Dali saíram só quarenta exclusivas unidades
Publicado em VEJA de 19 de maio de 2021, edição nº 2738