Por que a uva francesa syrah desponta nas vinícolas do Sudeste brasileiro
Tendência ocorre graças a uma interessante técnica de manejo do solo desenvolvida em Minas Gerais

Há um punhado de variedades de uvas usadas na produção de vinho que até mesmo as pessoas pouco afeitas à bebida já ouviram falar. É o caso da cabernet sauvignon, a mais plantada no mundo, ou da malbec, comumente associada ao plantio na Argentina. Agora, em interessante movimento, há uma cepa que vem se popularizando, inclusive por aqui. É a francesa syrah, que costuma dar origem a vinhos encorpados e potentes. Com o apoio de uma técnica agrícola revolucionária, ela encontrou em solo brasileiro, especialmente na Região Sudeste, ótimas condições de celebrado desenvolvimento.
O pulo do gato é a chamada dupla poda ou poda invertida. Normalmente, os frutos das videiras estão totalmente maduros no verão, entre os meses de janeiro e abril, no caso do hemisfério sul. O grande problema é que o excesso de calor e chuva afeta a maturação das uvas, o que inviabiliza o plantio em muitas regiões. Com o novo manejo, os viticultores fazem uma poda adicional, “enganando” a planta e alterando seu ciclo para que os frutos possam ser colhidos no inverno. A técnica foi desenvolvida por Murillo de Albuquerque Regina no início dos anos 2000, quando ele trabalhava para a Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais (Epamig). Depois de realizar um pós-doutorado na França, ele trouxe mudas de syrah na bagagem e começou os estudos. O resultado foi tão positivo que em menos de duas décadas o número de vinícolas disparou no Brasil.

A maior parte desses novos projetos começou a produzir justamente vinhos feitos com syrah, dadas as experiências comprovando a adaptação da variedade à dupla poda. É o caso da Terras Altas, pioneira na viticultura em Ribeirão Preto. “Plantamos a syrah esperando que ela demoraria três anos para ter qualidade comercial, mas com dois anos já conseguimos fazer um vinho pronto para entrar no mercado”, diz Ricardo Baldo, diretor da vinícola. Hoje, a Terras Altas tem três rótulos, todos feitos com a mesma uva, mas usando técnicas diferentes, como as passagens por barricas de madeira. “É a rainha das uvas tintas no Sudeste brasileiro”, afirma Baldo.
O reconhecimento internacional e os prêmios conquistados pelos vinhos brasileiros comprovam a aplaudida qualidade. Um dos rótulos da Terras Altas levou medalha de prata no Decanter Awards, um dos mais reputados do mundo. A mesma premiação reconheceu o Piquant Soléil, da Vinícola Ferreira, na Serra da Mantiqueira, entre Minas Gerais e São Paulo. O guia Descorchados, principal referência em vinhos da América do Sul, escolheu neste ano Sabina Syrah Seleção de Parcelas, da Sacramentos Vinifer, na Serra da Canastra, como melhor tinto do Brasil. O rótulo acaba de chegar ao mercado para mostrar a diversidade do terroir do Sudeste. “Identificamos diferenças nas parcelas do vinhedo e decidimos fazer outras interpretações do nosso vinho”, diz Jorgito Donadelli, fundador da vinícola.
Para além das fronteiras brasileiras, outros países da América também têm apostado na syrah. A Argentina ampliou consideravelmente os hectares dedicados à família francesa. No Chile, conhecido por outras uvas tintas, especialmente cabernet sauvignon e carménère, já existem grandes rótulos feitos com a syrah — caso de Pangea, da Ventisquero, criado pela colaboração do enólogo chileno Felipe Tosso com o australiano John Duval, referência em syrah. No mundo do vinho, sair do óbvio pode ser recompensador, e as mudanças de ares são belas aventuras.
A syrah, aliás, tem história. Uva mais emblemática do Rhône, no sul da França, é usada em alguns dos mais cobiçados rótulos da região, especialmente de denominações como Hermitage e Côte-Rôtie, que indicam a procedência e regras rígidas de elaboração. Em 1831, foi levada para a Austrália pelo escocês James Busby (1802-1871), considerado o pai da viticultura australiana. Ele foi responsável por escolher as mudas da França e da Espanha usadas no país, e a syrah, ou shiraz, como é conhecida por lá, tornou-se a variedade mais bem adaptada ao clima australiano. Mais tarde, a uva foi levada para outros países, como a África do Sul e os Estados Unidos. Aqui no Brasil, enfim, ganhou relevo inesperado, casamento de empreendedorismo com ciência.
Publicado em VEJA de 14 de março de 2025, edição nº 2935