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Como cada país define os estabelecimentos essenciais, que podem funcionar

Em tempos de coronavírus, o que é tido como indispensável em um lugar não é em outro

Por Sabrina Brito Atualizado em 4 jun 2024, 14h46 - Publicado em 30 abr 2020, 19h00

Desde que a pandemia da Covid-19 tomou o planeta de assalto, o cenário de filme apocalíptico, com cidades-fantasma espalhadas por toda parte, se tornou algo incomodamente comum. Não são apenas as ruas semidesertas de pessoas e de veículos que chamam atenção. Também se destaca na aterradora paisagem uma sucessão de estabelecimentos de portas cerradas. Quem não esteve em Marte — nem desconectado — nos últimos meses sabe exatamente o porquê disso: tentar brecar a disseminação do novo coronavírus. A fim de evitarem aglomerações, governos dos quatro cantos do globo baixaram normas determinando que só o comércio considerado “essencial” teria autorização para funcionar.

Mundo afora, ninguém estranhou que supermercados e farmácias, por exemplo, entrassem nesse seletíssimo rol. A partir daí, no entanto, o que se viu foi uma diferenciação em larga escala daquilo que poderia continuar a ser oferecido ao público. Dito de outra forma: salvo raras exceções, “produtos essenciais” não são unanimidade universal. O que é imprescindível para uma população não é para outra.

Tome-se o exemplo da França. Lá, lojas que vendem vinhos, queijos e chocolates foram autorizadas a continuar atendendo os clientes. Houve certa decepção quando as livrarias ficaram de fora da relação dos estabelecimentos essenciais — uma desfeita que os alemães não tiveram de amargar. Na Bélgica, quiosques de batatas fritas — iguaria que é objeto de uma deliciosa disputa entre belgas e franceses pelo crédito de tê-la inventado — ainda estão funcionando. Batatas fritas são mesmo indispensáveis?

Nos Estados Unidos, desde o início de abril 46 dos cinquenta estados ordenaram o fechamento de negócios “não essenciais” por causa do surto epidêmico. Shoppings, academias, teatros e museus entraram na lista. Todavia, em alguns lugares, lojas de armas de fogo e estabelecimentos dedicados à venda de maconha — para uso medicinal, vá lá, mas também recreativo — receberam sinal verde das autoridades para continuar de portas abertas durante a pandemia.

A exemplo do que ocorre nos Estados Unidos, na Austrália os estabelecimentos especializados em produtos para drinques foram declarados essenciais. E, como o premiê Scott Morrison disse também que os quebra-cabeças são fundamentais para ajudar a atravessar o surto do novo coronavírus, algumas lojas de brinquedos acabaram obtendo do governo licença para continuar atendendo os interessados. No Brasil, gerou polêmica a decisão do presidente Jair Bolsonaro de editar, na penúltima semana de março, um decreto que livrava os templos religiosos da obrigação de se manter, digamos assim, em quarentena.

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Afinal, por que tanta diversidade? Ou será que, diante da gravidade das consequências da Covid-19, tudo isso não seria “muito barulho por nada”? Na verdade, não se trata de uma questão menor. Para o historiador americano James Daughton, professor de história europeia na Universidade Stanford, a variedade de itens definidos como indispensáveis em cada país está relacionada à iden­tidade cultural de cada nação. “O que os governos julgam essencial não é necessariamente aquilo de que os indivíduos precisam, no âmbito material, para viver”, disse Daughton a VEJA. “O que os países querem é que seus cidadãos sintam que ainda têm acesso àquilo que os define como pessoas.”

Naturalmente, Daughton não ignora o peso dos negócios na diversificação das decisões sobre o que manter aberto ou fechado. “As indústrias de queijo e vinho na França são parte decisiva da economia, além de ter grande poder de influenciar a política nacional”, diz o historiador. Ele sublinha, entretanto, que mesmo nesse aspecto a cultura dá o tom. “Em tempos de stress, a população quer ter acesso a produtos que a confortem, que diminuam o peso da quarentena — ou seja, que mantenham elevado o seu moral”, frisa. Essencial, portanto, com o perdão da redundância, é o que vai na essência dos povos. Não há pandemia que derrube isso.

Publicado em VEJA de 6 de maio de 2020, edição nº 2685

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