Como cada país define os estabelecimentos essenciais, que podem funcionar
Em tempos de coronavírus, o que é tido como indispensável em um lugar não é em outro
Desde que a pandemia da Covid-19 tomou o planeta de assalto, o cenário de filme apocalíptico, com cidades-fantasma espalhadas por toda parte, se tornou algo incomodamente comum. Não são apenas as ruas semidesertas de pessoas e de veículos que chamam atenção. Também se destaca na aterradora paisagem uma sucessão de estabelecimentos de portas cerradas. Quem não esteve em Marte — nem desconectado — nos últimos meses sabe exatamente o porquê disso: tentar brecar a disseminação do novo coronavírus. A fim de evitarem aglomerações, governos dos quatro cantos do globo baixaram normas determinando que só o comércio considerado “essencial” teria autorização para funcionar.
Mundo afora, ninguém estranhou que supermercados e farmácias, por exemplo, entrassem nesse seletíssimo rol. A partir daí, no entanto, o que se viu foi uma diferenciação em larga escala daquilo que poderia continuar a ser oferecido ao público. Dito de outra forma: salvo raras exceções, “produtos essenciais” não são unanimidade universal. O que é imprescindível para uma população não é para outra.
Tome-se o exemplo da França. Lá, lojas que vendem vinhos, queijos e chocolates foram autorizadas a continuar atendendo os clientes. Houve certa decepção quando as livrarias ficaram de fora da relação dos estabelecimentos essenciais — uma desfeita que os alemães não tiveram de amargar. Na Bélgica, quiosques de batatas fritas — iguaria que é objeto de uma deliciosa disputa entre belgas e franceses pelo crédito de tê-la inventado — ainda estão funcionando. Batatas fritas são mesmo indispensáveis?
Nos Estados Unidos, desde o início de abril 46 dos cinquenta estados ordenaram o fechamento de negócios “não essenciais” por causa do surto epidêmico. Shoppings, academias, teatros e museus entraram na lista. Todavia, em alguns lugares, lojas de armas de fogo e estabelecimentos dedicados à venda de maconha — para uso medicinal, vá lá, mas também recreativo — receberam sinal verde das autoridades para continuar de portas abertas durante a pandemia.
A exemplo do que ocorre nos Estados Unidos, na Austrália os estabelecimentos especializados em produtos para drinques foram declarados essenciais. E, como o premiê Scott Morrison disse também que os quebra-cabeças são fundamentais para ajudar a atravessar o surto do novo coronavírus, algumas lojas de brinquedos acabaram obtendo do governo licença para continuar atendendo os interessados. No Brasil, gerou polêmica a decisão do presidente Jair Bolsonaro de editar, na penúltima semana de março, um decreto que livrava os templos religiosos da obrigação de se manter, digamos assim, em quarentena.
Afinal, por que tanta diversidade? Ou será que, diante da gravidade das consequências da Covid-19, tudo isso não seria “muito barulho por nada”? Na verdade, não se trata de uma questão menor. Para o historiador americano James Daughton, professor de história europeia na Universidade Stanford, a variedade de itens definidos como indispensáveis em cada país está relacionada à identidade cultural de cada nação. “O que os governos julgam essencial não é necessariamente aquilo de que os indivíduos precisam, no âmbito material, para viver”, disse Daughton a VEJA. “O que os países querem é que seus cidadãos sintam que ainda têm acesso àquilo que os define como pessoas.”
Naturalmente, Daughton não ignora o peso dos negócios na diversificação das decisões sobre o que manter aberto ou fechado. “As indústrias de queijo e vinho na França são parte decisiva da economia, além de ter grande poder de influenciar a política nacional”, diz o historiador. Ele sublinha, entretanto, que mesmo nesse aspecto a cultura dá o tom. “Em tempos de stress, a população quer ter acesso a produtos que a confortem, que diminuam o peso da quarentena — ou seja, que mantenham elevado o seu moral”, frisa. Essencial, portanto, com o perdão da redundância, é o que vai na essência dos povos. Não há pandemia que derrube isso.
Publicado em VEJA de 6 de maio de 2020, edição nº 2685