“Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no introito, mas no cabo; diferença radical entre este livro e o Pentateuco.” As primeiras quinze linhas, com 101 palavras, de Memórias Póstumas de Brás Cubas, o clássico de Machado de Assis, são um convite irrecusável ao baile da leitura — figurariam, sem favor algum, entre os mais aderentes parágrafos inaugurais jamais escritos. Pode-se dizer, com a certeza de duas novas e elogiadíssimas traduções para o inglês do pícaro romance (The Posthumous Memoirs of Brás Cubas, de Flora Thomson-DeVeaux, para a editora Penguin; e de Margaret Jull Costa e Robin Patterson para as edições Liveright), que a obra do Bruxo do Cosme Velho foi redescoberta no idioma de William Shakespeare (1564-1616) e Laurence Sterne (1713-1768). É um defunto autor, e não um autor defunto — como se, 112 anos depois de sua morte, 140 anos depois da publicação original do folhetim, entre março e dezembro de 1880, Machado anotasse, com algum pessimismo e muita ironia, como Brás, seu personagem, as aventuras do renascimento inesperado e tardio da obra-prima.
Convém ressaltar que já houve uma leva anterior de Machado em inglês, nos anos 1950 — naquele tempo, depois da II Guerra, os americanos, mesmo os mais cosmopolitas, enxergavam pouco mais do que o próprio umbigo. “Não tinham afeição por culturas estrangeiras, à exceção da francesa, tida como culta e sofisticada”, diz Earl Fitz, mestre em literatura comparada da Universidade de Nova York, professor do Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade Vanderbilt, do Tennessee, especialista em Machado. “A nova geração de leitores quer reduzir o paroquialismo tradicional, tem outros interesses.” Não se trata, por óbvio, de dizer que o escritor fluminense tenha virado best-seller, não — embora apenas a edição da Penguin já tenha sido impressa cinco vezes e sumiu na Amazon. Memórias Póstumas não é de fácil travessia, cujo estilo lembra “o andar dos ébrios”, segundo o falecido narrador. Mas o que há, afinal, em seus 160 curtos capítulos, aqui e agora, que não havia décadas atrás, e que atraiu hoje uma casta intelectualizada nos Estados Unidos? O americano Fitz, de português fluente, pega as páginas e abre o tomo no célebre capítulo CXVII, “O humanitismo”. Nele aparece, pela primeira vez, a antecipar um volume para chamar de seu, o filósofo Quincas Borba, e seu ideário: tal qual na Teoria da Seleção Natural de Charles Darwin, o Humanitismo revela que a sobrevivência se baseia na capacidade dos mais aptos de vencer. Para o crítico de literatura Antonio Candido (1918-2017), a essência da convicção machadiana, pendurada no Humanitismo, é “a transformação do homem em objeto do homem, uma das maldições ligadas à falta de liberdade verdadeira, econômica e espiritual”. Corte-se para 2020. O capítulo escolhido por Earl Fitz, “um dos mais poderosos e penetrantes de toda a narrativa moderna”, faz de Memórias Póstumas um libelo contra as injustiças do sistema, do globalismo — isso tudo que já levou tanta gente às ruas e que a pandemia do novo coronavírus parece expor com desmedida crueldade.
Há, ainda, o interesse pelo olhar cotidiano de um tempo, no Brasil do fim do século XIX, em que a escravidão moribunda determinava as relações sociais, e, naturalmente, permeia o livro. Calhou de o lançamento nos Estados Unidos coincidir com o assassinato do negro George Floyd, asfixiado pelo joelho de um policial branco. Houve quem ligasse os pontos, pontos que devem mesmo ser ligados, de óculos limpos, e relacionou a vida no Rio de Janeiro daquele tempo com a intolerância do século XXI, e Memórias Póstumas virou contemporâneo — somado à evidência de Machado ser “o maior escritor negro da história da literatura universal”, como apontou o crítico Harold Bloom (1930-2019). Houve, por fim (ou seria como princípio?), o empurrão de um escritor jovem, Dave Eggers, que escreveu o prefácio da edição traduzida por Flora Thomson-DeVeaux e assinou uma resenha positiva na revista The New Yorker — para ele, o livro é um dos “mais espirituosos, divertidos e, portanto, mais vivos e atemporais de todos os tempos”. Não demorou, portanto, para que os elogios levassem ao boca a boca, e do boca a boca se redescobrisse um romance que trata de problemas universais, como a desigualdade e o racismo. A picardia, a inovação e a aparente leveza de Memórias Póstumas escondem algo muito maior. “Por trás de um monte de futilidades aparecem questões primordiais”, diz Flora. Ou, como ela mesmo postou no Twitter, o folhetim do nosso tempo: “Memórias Póstumas de Brás Cubas é, sem dúvida, um romance de sua época — mas também diz respeito a nossa época, de formas que pesam a favor de Machado de Assis e formas que pesam contra nós. Existem ecos — é só trocar a febre amarela pela Covid-19 — e existem continuidades — o racismo sistêmico, tão doloroso hoje quanto era nos anos 1880”. Machado de Assis reverbera. Deixa um legado, deixa rebentos, ao contrário de Brás Cubas, como registrado na pena de suas derradeiras linhas: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”.
Publicado em VEJA de 26 de agosto de 2020, edição nº 2701