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Editor de diversidade fala sobre ‘demanda reprimida’ no mercado de livros

Fernando Baldraia busca novas obras e autores para a Companhia das Letras

Por Luiz Paulo Souza Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 16 ago 2024, 11h29 - Publicado em 16 ago 2024, 11h25

A diversidade do mercado editorial sempre foi tema de discussões acaloradas, e não sem motivo. A homogeneidade desse ambiente corporativo sempre relegou autores e autoras negras e queers a nichos. Na última década, no entanto, em razão dos movimentos sociais, isso começou a mudar. 

Uma reportagem de VEJA registrou essa transição, ao mostrar que, aos poucos, as editoras têm trabalhado para resgatar personagens históricos que foram esquecidos e para dar espaço a autores contemporâneos com vivências – e aparências – diferentes das dominantes. 

Fernando Baldraia, historiador e editor de diversidade da Companhia das Letras, falou sobre como esse processo tem ocorrido, a importância da publicação dessas obras e os movimentos políticos que motivam bem-vindas mudanças. 

Parece estar havendo uma maior abertura para o resgate de intelectuais negros importantes na história. Isso é um movimento real? Eu acho que é. Só não sei se pelas mesmas razões. Acho que tem uma retomada dessa literatura negra americana e nós também começamos a ver a publicação no Brasil de autores africanos e afro-europeus. Acredito que isso seja movido pelo Black Lives Matter. Que, é importante dizer, começou bem antes do assassinato do George Floyd. 

Em que contexto essa mudança ocorre? Acho que tem uma leve mudança na percepção do que é a história moderna e isso coloca a escravidão em um outro lugar. É como se estivéssemos virando de leve a ótica histórica para refletir se só Revolução Francesa é importante ou se a Revolução Haitiana também é? Se só a Revolução Industrial é importante ou  movimento das sufragistas mulheres também é? Esses deslocamentos estão produzindo um reflexo na indústria cultural bastante nítido. 

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Além dos personagens históricos, também há mais espaço para os escritores contemporâneos? Isso definitivamente tem melhorado, não tenho dúvidas. Passa longe de ser o suficiente, mas está mudando e nós temos trabalhado efetivamente para isso. Temos procurado ativamente jovens talentos e autores que publicaram boas obras de maneira independente, por exemplo. Mas também há uma preocupação em não canibalizar editoras menores que têm feito esse trabalho há mais tempo. 

Pode falar um pouco mais sobre isso? Antigamente tinha essa coisa de trazer o catálogo. A pessoa vem para a editora grande e depois traz todos os seus livros para a editora grande. É um grande erro. Tem que haver uma política de boa vizinhança. Alguém como a Eliana Alves Cruz, que tem os primeiros livros na Malê e na Palas. O objetivo deve ser que os livros dela na Companhia puxem as vendas dos livros nas editoras menores e não ao contrário.

Vocês acabaram de lançar Filho Nativo, do Richard Wright. Pode falar um pouco sobre esse processo? Na verdade, esse livro está comprado desde 2020, mas ele só foi publicado agora porque, pensando em termos de diversidade no mercado editorial, não se trata apenas de publicar as pessoas negras. A linha de produção do mercado editorial é excludente para pessoas negras. Então, o livro demorou tanto para sair porque tinha também esse desafio de fazer com que a publicação de autores negros também refletisse na inclusão de outros profissionais negros no processo editorial.

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Por que publicar esta obra agora? A primeira coisa que é preciso destacar é que nós não estamos publicando nada novo. Todos esses autores já foram publicados no Brasil. Na década de 70, essa literatura já estava circulando, em um momento em que o movimento negro brasileiro estava se organizando de maneira bastante consistente. Essas obras eram consumidas por figuras importantes como Eduardo Oliveira, Beatriz Nascimento e Lélia González. O problema é que esses autores foram tirados de circulação num certo momento, pararam de ser publicados, esgotaram.  O que a gente está fazendo agora, de certa maneira, é recolocar esses autores em circulação num momento agudo de debate sobre os rumos da democracia.

O senhor comentou sobre incluir pessoas negras em todo o processo editorial, mas isso não é necessariamente a regra em todas as editoras. Por que isso acontece?Acho que isso acontece por inércia. E há duas razões para isso: a primeira é que esse sempre foi um ambiente majoritariamente branco; a segunda é que o próprio mercado te exige produzir coisas com velocidade. Na dinâmica capitalista, você só consegue produzir um movimento de contracorrente se você reduzir a velocidade de produção, nem todas as editoras conseguem fazer isso. 

E isso afeta o lucro, correto? Você só consegue fazer isso se for uma empresa grande. Na Companhia nós queremos publicar autores negros como uma política de diversidade, e não só para aproveitar uma onda. Isso pode, sim, envolver, no limite, perder um pouco de grana para pensar no impacto político e social mais adiante. 

Voltando para o livro, como essa história se relaciona com a vivência brasileira? Lendo um livro como Filho Nativo, dá para perceber que o grau de correspondência entre a realidade de famílias negras americanas e brasileiras, muito expostas a violência e a brutalidade policial, por exemplo.  O livro começa com uma mãe negra, solo, com três crianças dentro de casa, precisando dar jeito de se alimentar. É uma maneira de diluir um pouco essa grande oposição que a gente faz entre o Brasil e os Estados Unidos. 

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Por que fazer isso através de livros de ficção? Uma história tão avassaladora quanto essa, de O Filho Nativo – perpassada por muita agressividade, por muita subjetividade, por muita dor – é importante do ponto de vista da intelectualidade, do diálogo acadêmico, mas também para fazer com que a realidade seja mais facilmente compreendida. Eu diria que é uma forma de produzir uma imaginação literária da experiência negra ao longo do século XX. É uma forma de sentir e interpretar o mundo.

Desde quando existe essa preocupação com diversidade na Companhia? É uma política que foi institucionalizada? Acho que é um processo que está em construção. Fui contratado em 2020 como editor de diversidade. Mas eu não era editor antes, então precisei estudar para entender como as coisas funcionavam. Eu sempre tive a prerrogativa de poder publicar em qualquer um dos 17 selos,  desde os livros infantis, até os livros de psicanálise. Mas agora, no último um ano e meio nós passamos a entender melhor como institucionalizar essas ideias, com um comitê de responsabilidade social, por exemplo. Quando eu entrei, eu era o único editor negro entre 20 e tantos. Hoje mais quatro já foram contratadas. Com mais diversidade as coisas também começam a acontecer de maneira mais orgânica porque cada um traz a sua rede de contatos. 

É possível dizer que esses livros estão suprindo uma demanda reprimida? Vou te dar dois exemplos bastante evidentes de que essa demanda reprimida existia. A primeira e mais óbvia são as obras da Djamila Ribeiro, que venderam muito. A segunda são as obras da Eliana Alves Cruz. Um livro como Solitária, uma obra simples e direta para discutir o trabalho doméstico no Brasil também vende super bem. E continuam indo bem. Não tem nem dúvida de que existe uma demanda reprimida.

Em uma entrevista há alguns anos você disse que não dava para confiar no governo Bolsonaro para a democratização da leitura. Do seu ponto de vista, agora isso está melhor? Eu acho que qualquer governo que não fosse como o do Bolsonaro já melhoraria as coisas, porque lá existia uma campanha contra as universidades, contra a erudição, contra o saber, contra a ciência. O reestabelecimento de uma sociedade civil, que não desdenhe do mundo dos livros e da ciência já melhora muito as coisas. Isso não é um grande mérito, a questão é só que o demérito da extrema-direita é grande demais. Não é  caso de elogios desmedidos, o que está acontecendo agora não é mais que a obrigação. Agora, não da para esquecer que o bolsonarismo saiu do governo, mas ele e a extrema-direita continuam de pé e organizados.

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