Físico que ajudou a criar a bomba atômica conta como decidiu aprender português
Em coletânea de memórias, o físico americano Richard Feynman, um dos criadores da bomba atômica, conta causos e anedotas de sua vida pessoal e acadêmica

Só pode ser brincadeira, sr. Feynman! (Intrínseca), que sai agora em nova edição, é uma coletânea de histórias sobre a vida do físico Richard Feynman (1918-1988), narradas com humor e picardia pelo próprio físico. O livro explora tanto suas aventuras científicas quanto suas experiências pessoais, desde a infância curiosa até o trabalho no Projeto Manhattan e suas viagens ao redor do mundo. A obra revela a personalidade excêntrica e a mente brilhante de Feynman, mostrando sua paixão pela física, seu senso de humor irreverente e sua busca constante por conhecimento e diversão. O trecho “O americano outra vez!”, reproduzido abaixo, fala sobre a experiência do cientista americano ao decidir ir para a América do Sul e aprender português. Ele inicialmente escolheu espanhol, mas considerou aprender língua portuguesa após se impressionar com uma mulher.
O americano outra vez!
Certa vez, dei carona a um sujeito que me disse o quanto a América
do Sul era interessante, e que eu devia conhecê-la. Reclamei que
a língua era outra, mas ele disse para eu aprender a língua — não
é tão difícil assim. Então achei que era uma boa ideia: vou para a Amé-
rica do Sul.
Cornell tinha alguns cursos de línguas que seguiam um método usado
durante a guerra, no qual pequenos grupos de cerca de dez alunos e um
falante nativo da língua falavam exclusivamente na língua estrangeira —
apenas isso. Como em Cornell eu era um professor de aspecto bem jovial,
decidi fazer o curso como se fosse um estudante regular. E, como eu ainda
não sabia meu país de destino na América do Sul, escolhi espanhol porque
a maior parte dos países sul-americanos fala espanhol.
Então, quando chegou a hora da inscrição para o curso, estávamos do
lado de fora, prontos para entrar na sala, quando apareceu uma loura de pa-
rar o trânsito. Sabe quando uma vez ou outra você sente esse “uau”? Ela era
magnífi ca. Disse com meus botões: “Talvez ela faça o curso de espanhol…
seria ótimo!” Mas não, ela entrou na aula de português. Então pensei: “Ora
bolas, eu devia aprender português também.”
Comecei a ir atrás dela quando minha personalidade anglo-saxônica dis-
se: “Não, esse não é um bom motivo para decidir que língua aprender.” En-
tão dei meia-volta e me inscrevi no curso de espanhol, para meu profundo
arrependimento.
Algum tempo depois, numa reunião da Sociedade de Física em Nova
York, encontrei-me ao lado de Jaime Tiomno, do Brasil, e ele perguntou:
— O que você vai fazer no próximo verão?
— Acho que vou à América do Sul.
— Ah! Por que não vem ao Brasil? Consigo uma posição para você no
Centro de Pesquisas Físicas.
Então agora eu ia ter de transformar todo aquele espanhol em português!
Encontrei um estudante português de graduação em Cornell, que me
dava aulas duas vezes por semana, então consegui transformar o que já ti-
nha aprendido.
No avião que me levava ao Brasil, fi quei ao lado de um colombiano que
só falava espanhol, então não quis conversar com ele para não me confun-
dir. Mas na minha frente havia dois caras falando português. Eu nunca
tinha ouvido português de verdade; só tinha tido um professor que fala-
va devagar e com clareza. E ali estavam os dois caras naquela tagarelice,
brrrrrrr-a-ta brrrrrrr-a-ta, e eu jamais ouvia a palavra “eu”, ou a palavra “o”,
nem nada parecido.
Finalmente, quando fi zemos uma escala de reabastecimento em Trini-
dade, fui até eles e disse bem devagar, em português, ou no que eu achava
que era português:
— Com licença… estão entendendo… o que digo?
— Pois não, por que não? — responderam eles.
Então expliquei da melhor forma possível que tinha estudado português
durante alguns meses, mas nunca tinha ouvido uma conversa nessa língua, e
agora, ouvindo-os no avião, não entendia uma só palavra do que diziam.
— Ah — disseram eles, com um sorriso. — Isso não é português! É ladi-
no! Judeu!
O que eles estavam falando estava para o português como o iídiche está
para o alemão, então imagine um estudante de alemão tentando entender a
conversa em iídiche de dois caras à sua frente. Claro que é alemão, mas não
funciona. Ele não deve ter aprendido alemão muito bem.
Ao voltarmos ao avião, eles me indicaram um homem que realmente fa-
lava português, e me sentei ao lado dele. Tinha estudado neurocirurgia em
Maryland, então era muito fácil conversar com ele — enquanto se tratava
de cirurgia neural, ou cerebral, e outras coisas “complicadas”. As palavras mais
longas são bem fáceis de traduzir para o português porque a única diferença
está no fi nal: “-tion” em inglês vira “-ção” em português; “-ly” é “-mente”,
e assim por diante. Mas quando ele olhava pela janela e dizia alguma coisa
simples, eu fi cava perdido: não conseguia decifrar “o céu está azul”.
