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Os negrinhos fedidos

Joana D’Arc Félix de Souza, de 55 anos, química, foi tão longe que sua história vai virar filme

Por Joana D’Arc Félix de Souza
Atualizado em 4 jun 2024, 16h27 - Publicado em 26 abr 2019, 07h00

Nasci em Franca, no interior de São Paulo, filha de uma empregada doméstica e de um operário de curtume. Cresci com dois irmãos e morávamos em uma casa no mesmo terreno da fábrica que empregou meu pai. Foi lá que vi pela primeira vez pessoas de jaleco branco trabalhando com substâncias químicas — e pensei no que queria ser.

Sou a caçula, e quando eu era pequena minha mãe me levava junto para a casa de uma patroa, diretora de um colégio público. Um dia a patroa percebeu que eu sabia ler — tinha aprendido com minha mãe, pintando palavras em jornais que ficavam espalhados pela residência. Foi minha primeira grande oportunidade: a patroa me colocou na escola que dirigia. Eu tinha 4 anos. Depois, fui para o colégio onde meus irmãos estudavam. Por causa do lugar em que morávamos, e pela nossa cor, eu e eles ganhamos um apelido: éramos os “negrinhos fedidos do curtume”. Alguns episódios me deixavam assustada. Em um deles, a diretora foi até a sala de aula e disse para a turma: “Crianças do nível de vocês nunca serão coisa alguma”. Fui para casa e pedi para sair da escola. Meu pai respondeu que eu ia estudar e me tornar alguém na vida.

Por ter ido à escola desde cedo, já aos 14 anos passei no vestibular: para química, na Unicamp. Quando fiz a matrícula, meu pai não sabia se conseguiria me manter na faculdade. Ele mandava o dinheiro contado para que eu morasse num pensionato em Campinas. Toda sexta eu pedia uns pãezinhos no refeitório da universidade, para comer no fim de semana. Tudo mudou quando conquistei uma bolsa de iniciação científica. Passei até a enviar 100 reais mensais aos meus pais.

Dei sequência aos estudos. No doutorado, meu orientador explicou que os alunos costumavam estudar por um ano nos EUA. Havia um porém: em minha área, iam para a Universidade de Clemson, na Carolina do Sul, então um estado extremamente racista. Compartilhei meu receio com meu pai, que disse: “Aproveite a oportunidade, só não ande sozinha na cidade”. Foi o pior ano da minha vida. Sofri muitas agressões verbais por causa da minha cor. Já no segundo dia na faculdade, eu precisava tirar um xerox e simplesmente não fui atendida. Explicaram-me que o ato de atender um negro dependia mais do humor do funcionário.

Foi horrível, mas, por não ter desistido, ganhei a oportunidade de iniciar o pós-doutorado na Harvard. Em Boston, a vida mudou da água para o vinho. Pensei até em morar nos Estados Unidos. Contudo, quando minha irmã e meu pai morreram, no intervalo de um mês, minha mãe ficou muito doente, e voltei para o Brasil. Foi um choque de realidade. Liguei para meu antigo orientador, e ele disse: “Pare de ser preguiçosa. Mude a realidade de seu país. Faça em uma escola técnica daqui pesquisa do nível alcançado na Harvard”. Prestei concurso para professora em Franca. Hoje sou coordenadora do curso técnico em curtimento. Sim: voltei para o couro. Também dou aula no curso de meio ambiente e no de biotecnologia.

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A região da escola é um ponto de tráfico de drogas e prostituição. Com o apoio da Fapesp e de empresas privadas, distribuí bolsas. Só que recrutei os piores alunos. Eles ficam no colégio, comigo, até as 11 da noite. Em quinze anos, orientei quarenta alunos. De ex-bandidos e ex-prostitutas, oito estão no mercado e 32 na faculdade (trinta cursam química). Eles só precisavam de oportunidade. Conquistamos, juntos, quinze patentes internacionais e mais de oitenta prêmios. Acredito que podemos fazer pesquisa de ponta sem estar numa grande universidade. Digo o mesmo sobre ser negra. O racismo existe, mas não podemos nos prender ao vitimismo. Aprendi com meu pai. Levanto a cabeça. E assim minha história agora vai virar filme. Eu serei vivida no cinema por Taís Araújo.

Depoimento a Jennifer Ann Thomas

Publicado em VEJA de 1º de maio de 2019, edição nº 2632

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