‘Por vezes, o relato me virava o estômago’, diz tradutora de livro sobre Holocausto
Economista de formação, Zsuzsanna Spiry descreve como foi o trabalho de verter 'O Crematório Frio: Um relato de Auschwitz' diretamente do húngaro

Em O Crematório Frio: Um relato de Auschwitz (Companhia das Letras), o escritor József Debreczeni (1905-1978) faz um relato pungente sobre a desumanização e o sofrimento nos campos de concentração nazistas. Setenta anos após sua primeira publicação em húngaro, a obra, considerada um clássico redescoberto da literatura do Holocausto, ganha sua primeira edição em língua portuguesa. O texto, traduzido diretamente do original por Zsuzsanna Spiry, descreve as condições desumanas, a luta pela sobrevivência, a perda da dignidade e a constante presença da morte nos centros de detenção e extermínio controlados pelo regime alemão. A edição, resultado do trabalho dedicado de Spiry, mantém a fidelidade histórica e a força emocional da obra original. É importante ressaltar que, além de tradutora, ela é economista e pesquisadora, com mestrado e doutorado dedicados ao intelectual húngaro naturalizado brasileiro Paulo Rónai (1907-1992), tradutor, entre outras obras, de A Comédia Humana, de Balzac.
Considerando que esta é a primeira tradução direta do húngaro para o português da obra, quais foram os principais desafios que você enfrentou ao traduzir um relato tão denso e emocionalmente carregado? Bem, aqui tem duas questões em uma. Em primeiro lugar, a linguagem do autor. Apesar de ele ser jornalista e poeta, e escrever em um estilo claro, agradável até, na época dos eventos ele já vivia na Iugoslávia (atualmente Sérvia) fazia alguns anos, portanto o húngaro dele, além de ser meio regional, já estava um pouco distante do húngaro corrente de Budapeste. Mesmo depois da Guerra, ele voltou para Belgrado, portanto, a edição revisada de 1975, não alterou essa característica. Sem mencionar a distância entre o original — 1950 — e o momento atual, que em termos de dinâmica das línguas significa um deslocamento. Essa característica demandou muito mais pesquisa durante o ato tradutório. Quanto ao conteúdo, foi um trabalho bem complicado… não poucas vezes tive que parar de traduzir pois o texto me virava o estômago. Só consegui avançar devido ao objetivo que havia me proposto quando aceitei o trabalho, isto é, não deixar a humanidade esquecer. Gostaria de deixar claro, não sou judia. Tendo ciência dos fatos, foi uma forma de contribuir, apesar da dificuldade da tarefa.
O livro é descrito como um dos primeiros relatos sobre os campos de concentração após a guerra. Como essa característica influenciou sua abordagem de tradução, e como você tentou manter a fidelidade à época dos eventos, como é indicado nas notas da tradutora ao longo do texto? O objetivo de manter os topônimos na língua original, em húngaro ou alemão, visava permitir ao leitor interessado retrilhar os eventos e as localidades, caso quisesse. Exatamente, manter a fidelidade histórica. Quanto à fala dos guardas e todo vocabulário que foi mantido em alemão, tal como no original húngaro, portanto já era uma decisão do autor que buscamos respeitar, e também teve a finalidade de colocar o leitor brasileiro diante daquela realidade: o choque de ter que entender ordens dadas em uma língua estrangeira. A tortura era praticada em muitos níveis, inclusive linguística. Ao longo do texto, Debreczeni também faz várias citações em outras línguas, que julgamos importante manter na tradução, até para reforçar uma das afirmações dele, de que o comando dentro do campo era feito pela escória social, enquanto que à camada social mais culta eram destinados os trabalhos mais degradantes. Portanto, a fidelidade foi mantida com a aderência aos termos utilizados e aos fatos descritos pelo autor. A opção de elucidar o leitor com as notas de rodapé foi, por sua vez, uma tentativa de fazer uma ponte com a realidade linguística atual.
A obra original foi publicada em 1950, e esta edição é uma versão revisada da segunda edição de 1975. De que forma essa história da publicação impactou seu trabalho como tradutora e sua visão sobre a relevância da obra para o público contemporâneo? No momento da tradução, em 2023, o livro ainda não estava na “boca do povo”. Isto é, ainda não tinha saído na lista dos dez livros mais vendidos do New York Times. Mesmo na Hungria era uma obra meio esquecida. Portanto, foi muito difícil encontrar informações sobre o livro ou sobre o autor. Eu só soube que era uma segunda edição revisada quando peguei o texto para traduzir. Não sei informar do que consistiu a revisão para a segunda edição. Este livro é muito relevante para o público contemporâneo, se considerarmos a história do surgimento do nazismo vis-a-vis o ressurgimento da extrema direita mundo afora, inclusive na própria Hungria. Acho importante avaliar os últimos eventos sob essa ótica. Então se considerarmos esse retorno da extrema direita ao cenário político mundial, o livro de Debreczeni tem o potencial de relembrar as consequências que tal movimento teve na história recente da humanidade.

O autor, József Debreczeni, expressou em seus trabalhos a preocupação com a “normalização” do Holocausto. De que maneira você vê a tradução desta obra para o português como uma contribuição para evitar a banalização do tema, e como você espera que o público leitor no Brasil receba esta obra? Talvez por ser jornalista e ter um olhar mais apurado para os fatos, uma questão que Debreczeni deixa muito evidente neste livro é que não era somente limpeza étnica. Esses horrores evidentemente estão todos no livro. Mas, além disso, de várias maneiras ele deixa bem clara a exploração econômica do trabalho escravo ao qual os prisioneiros eram submetidos pelo Reich. E esta é uma linguagem que a sociedade moderna entende. Nesse sentido acho que o texto também dialoga com o leitor contemporâneo. Vejo muitos comentários sobre a carga emocional do livro, mas talvez devido à minha formação como economista, para mim a questão econômica que Debreczeni desnuda também é muito relevante.
Em termos de estilo e linguagem, como você descreveria a escrita de Debreczeni e como você tentou recriar essas características na sua tradução para o português? Acredito que o próprio subtítulo, considerando ser Debreczeni um jornalista, explicita bem o estilo do texto: é um relato, um documentário. Na minha opinião, não se percebe autocomiseração, o que o autor descreve é uma tragédia humana. Ele não precisa adjetivar nada, e de fato não adjetiva nada, pois os próprios fatos falam por si. Seu estilo claro e descritivo induz o leitor a reações do tipo “texto emocionalmente carregado”. Até existe um certo lirismo na segunda e terceira página do livro, em que ele descreve as pessoas que estão à sua volta, compartilhando um só destino, mas é só um lampejo, logo abafado pela realidade dos fatos. E voltamos a sentir uma pequena brisa de esperança, quando, depois da libertação, ele menciona que tem um buquê de flores sobre a mesa. Mas é só. O estilo dele faz o leitor reagir emocionalmente. Quanto à sua pergunta sobre recriar as características do estilo do autor, tenho por norma, durante o ato tradutório, virar uma sombra do autor. Tento respeitar ao máximo o estilo e o registro usados pelo autor. Só quando as diferenças linguísticas entre as duas culturas não permitem uma tradução direta, busco alternativas que se aproximem ao máximo às intenções do autor.