A candidatura de Kanye West nos EUA veio para confundir
O rapper entra na disputa pela Casa Branca sem chance de ganhar e fica a dúvida: vai ajudar Trump, está desequilibrado, quer vender álbuns — ou tudo junto?
Quando a corrida presidencial nos Estados Unidos parecia não poder ficar ainda mais imprevisível, em meio a uma pandemia mundial, a uma acirrada polarização política e à maior crise econômica das últimas décadas, a chegada de um excêntrico terceiro elemento complicou um pouco mais o panorama eleitoral. Aos 43 anos, com uma sólida carreira musical, repleta tanto de prêmios quanto de polêmicas, o rapper bilionário Kanye West formalizou sua candidatura no início de julho, por um certo Birthday Party (“O dia em que eu ganhar será aniversário de todo mundo”), e já teria investido 7 milhões de dólares na empreitada. Diferentemente dos outros sete desconhecidos que se inscreveram para enfrentar o republicano Donald Trump e o democrata Joe Biden em 3 de novembro, West é celebridade com C maiúsculo. Mas, igualzinho a eles, não tem a menor chance de ganhar — seu nome nem sequer aparecerá nas cédulas de pelo menos sete estados, seja porque perdeu prazos, seja porque houve fraude na coleta de assinaturas a seu favor.
Mesmo assim, por incrível que pareça, a candidatura pode não ser totalmente irrelevante. “Ele não vai mudar radicalmente o curso das eleições, mas, nos estados onde a disputa for apertada, um pequeno desvio de votos pode fazer a diferença”, diz Richard Benedetto, analista político e professor da Universidade Americana, de Washington. A possibilidade preocupa principalmente os democratas, que dependem do apoio da população negra americana — 13% do eleitorado — para ganhar a eleição e veem com certa apreensão o impacto do nome famoso entre eleitores mais interessados em música do que em política. No momento, o voto negro é maciçamente de Biden, e Kanye West, na interpretação da campanha democrata, entrou na corrida para atrapalhar essa vantagem e favorecer Trump. Não deixa de fazer certo sentido, embora a veia marqueteira do rapper também seja bem conhecida.
Filho de uma professora universitária e um fotógrafo, ambos ativistas negros, West em diversos momentos da carreira militou pela causa, nem sempre com elegância — entrou para os anais do MTV Awards a ocasião, em 2009, em que interrompeu Taylor Swift, que agradecia um prêmio, para dizer que quem deveria ter ganho era Beyoncé. Depois disso, o muito bem-sucedido cantor e produtor se casou e teve quatro filhos com a celebérrima Kim Kardashian, lançou uma marca de roupas, assumiu a pregação em um culto dominical no jardim das suas várias casas e, politicamente, virou a casaca. Desde que Donald Trump se elegeu, em 2016, já derramou elogios ao presidente (que retribuiu à altura), posou com o boné MAGA (Make America Great Again) e, em 2018, encontrou-se com ele na Casa Branca, em uma reunião cheia de rapapés.
Assim que Kanye West anunciou sua candidatura, assessores e advogados republicanos se ofereceram para ajudá-lo nos processos de inscrição e no encaminhamento jurídico de recursos em estados onde seu nome não foi validado — notadamente nos chamados swing states, como Wisconsin e Ohio, que não pendem tradicionalmente para nenhum lado. Em recente entrevista, indagado se achava bom ser uma pedra no sapato de Biden, rebateu: “Não vou negar”. Está na disputa para atrapalhar mesmo, então? Resposta: “Não vou entrar nessa questão. Jesus é rei”. Apesar de não ter divulgado nenhuma proposta formal de governo, West defende o ensino de religião nas escolas e é contra o aborto — tema, aliás, do único comício de sua campanha, quando, vestindo colete à prova de balas, revelou que ele e Kim “quase mataram” a filha mais velha, North, de 7 anos. Horas depois, nas redes sociais, onde é ativíssimo, insinuou que tenta se divorciar de Kim desde 2018, porque ela quer interná-lo. Ele foi hospitalizado duas vezes, em surto psicótico. “Se eu for preso como Nelson Mandela, todos sabem de quem é a culpa”, escreveu no Twitter.
Kim, que já passou algumas temporadas afastada do marido, desmentiu as acusações e ressaltou que, embora “brilhante”, ele é “uma pessoa complicada”. O próprio West declarou que sofre de transtorno bipolar. Segundo a família, porém, ele se recusa a tomar medicamentos, alegando que podem alterar sua personalidade e criatividade. Com esse histórico, o rapper transmutado em candidato pode atrapalhar Biden, pode ajudar Trump — ou pode simplesmente alavancar publicidade para um álbum novo que já teve o lançamento adiado várias vezes. Com Kanye West, nunca se sabe.
Publicado em VEJA de 23 de setembro de 2020, edição nº 2705