“Nunca pensei que teria vergonha da Rússia. Mas agora acho que foi traçada uma linha que separa o antes e o depois.” Foi assim, numa publicação no Telegram, que a primeira-bailarina do Bolshoi, Olga Smirnova, anunciou a saída da trupe moscovita. Nascida e criada em São Petersburgo, tendo um dos avós ucraniano, ela se juntou ao Balé Nacional da Holanda. Fará o pas de deux com o solista brasileiro Victor Caixeta, bailarino de Uberlândia que saiu do Mariinsky, celebrada instituição artística da cidade das noites brancas de Dostoiévski. “Tive de tomar a difícil decisão de deixar a Rússia, o lugar que foi minha casa durante quase cinco anos”, publicou em suas redes sociais. Outro brasileiro, o fluminense David Motta Soares, também do Bolshoi, arrumou as malas e partiu. “Tenho muitos amigos na Ucrânia, e nem de perto consigo imaginar o que eles podem estar passando, que meu coração fique com eles”, escreveu.
A defecção de Olga, Victor e David, entre outros, ecoa a postura de duas das maiores lendas da dança no tempo da União Soviética. Em 1961, em uma turnê do balé Kirov em Paris, consentida pelas autoridades do Kremlin porque ajudaria a espalhar a grandeza da cultura soviética, o tártaro Rudolf Nureyev deu um jeito de não voltar para casa. Já no aeroporto parisiense de Le Bourget, como quem fizesse um assemblé acrobático, pulou uma catraca e avisou: “Quero ser livre”. Em 1974, foi a vez de Mikhail Baryshnikov, asilado em Toronto, no Canadá. Há um padrão: o balé, tão leve, tão delicado, tão sublime, é desde sempre termômetro da ebulição da Rússia. Se há movimento de dissidência, é porque as engrenagens do poder incomodam — ou, como escreveu Smirnova, uma linha foi desenhada, impondo alguma tomada de posição. “Não posso agir como se nada estivesse acontecendo”, disse Motta Soares.
A diáspora dos dançarinos, portanto, é uma medida política. A revista britânica The Economist mantém o “índice Big Mac”, afeito a medir o poder de compra em mais de 100 países a partir do preço do sanduíche. Um suposto “índice sapatilha no exílio” mediria o incômodo dos russos, e de quem vive lá, ante o autocrata de plantão. Não por acaso, como confirmação da relevância da suprema arte aos olhos do mundo, o ex-primeiro ministro Dmitri Medvedev, fantoche de Vladimir Putin, chamou o balé, há alguns anos, de “arma secreta”. Ou, na linguagem diplomática, o soft power destinado a fixar imagens edulcoradas e mover montanhas, a derradeira ferramenta pacífica apresentada antes de as bombas caírem.
O balé, enfim, especialmente a escola clássica daquela região do mundo, ajuda a entender a guerra de agora. Quando a estação de TV russa independente Dozhd foi retirada do ar pelo governo, no início do mês, o derradeiro ato foi pôr nas telas cenas do Lago dos Cisnes. “Foi uma trolagem épica”, diz o historiador Simon Morrison, autor do livro Bolshoi Confidencial. A mesmíssima filmagem foi exibida em rede quando os tanques desfilaram por Moscou, em 1991, depois de Mikhail Gorbachev ser capturado em sua dacha na Crimeia. “Quando o golpe foi deflagrado, as telas ficaram com Tchaikovsky porque não queriam que as pessoas soubessem o que estava acontecendo”, lembra Morrison. Ou seja: o Lago dos Cisnes de fevereiro de 2022 era a senha para que a população fosse avisada de que algo muito ruim — e censurado pelas autoridades — estava acontecendo na Ucrânia. A mensagem foi entendida por boa parte do povo, para quem o balé é tão popular quanto o futebol. Viralizou, aliás, durante a Copa do Mundo de 2018 a linda imagem das bailarinas do Bolshoi, de tutu, debruçadas no celular, no intervalo de uma das apresentações, para acompanhar uma partida decisiva da Rússia. A fotografia foi feita pela maranhense Bruna Gaglianone, bailarina do teatro, e que há duas semanas também disse adeus à casa.
É possível que os bailarinos sem chão retornem a Moscou e São Petersburgo, a depender do futuro dos combates na Ucrânia e do concerto global. Por ora, a debandada comprova que há algo fora de ordem na nova ordem mundial. Se não voltarem, vale lembrar a frase irônica e dura de Nureyev, instado a dizer o que sentia sem pátria: “Nunca lamentei ter deixado a Rússia. Para mim, um país é apenas um lugar para dançar”.
Publicado em VEJA de 30 de março de 2022, edição nº 2782