A grande maioria da população de Mianmar, a antiga Birmânia, situado no Sudeste Asiático, jamais viveu em outro sistema que não seja um governo controlado pelos militares. A partir de 2011, porém, os generais decidiram dar ao país um gostinho de democracia: moveram-se para os bastidores, relaxaram a repressão e soltaram Aung San Suu Kyi, a voz da oposição, em prisão domiciliar há décadas e ganhadora do Nobel da Paz por sua resistência. A abertura lenta e gradual, porém, não resistiu a uma fragorosa derrota eleitoral em novembro. Encostados na parede, os generais fizeram o de sempre: derrubaram o presidente civil, prenderam Suu Kyi de novo e decretaram estado de emergência, retomando as rédeas do poder. Mas os tempos mudaram e os jovens asiáticos não aceitam mais essas coisas pacificamente. Inspirados pelas mobilizações populares dos vizinhos Hong Kong e Tailândia, os birmaneses saíram em manifestação portando cartazes com foto da líder oposicionista e exigindo sua libertação. Em pouco mais de um mês, sessenta morreram, vítimas da brutal repressão policial.
Até as eleições de novembro, o presidente Win Myint dava cara civil ao governo e obedecia às ordens de Suu Kyi, uma espécie de primeira-ministra de fato (ela está impedida para sempre de se candidatar à Presidência). No início de fevereiro, os dois foram presos sob acusações pífias: ela teria sete walkie talkies contrabandeados em casa e ele desrespeitara as regras de distanciamento durante a campanha eleitoral. Terminou aí um experimento desde o começo instável, em que a fama de heroína de Suu Kyi acabou manchada pela disposição de fazer acordos com os militares e por seu inabalável apoio às atrocidades praticadas pela maioria budista contra os muçulmanos rohingya.
Com o caminho livre, o Exército impediu a posse dos novos integrantes do Legislativo — mais de 80% pertencentes ao LDN, partido de Suu Kyi —, cortou as redes de comunicação em todo o território e determinou força total na repressão a manifestações. “Desde que tomaram o poder, as Forças Armadas se consideram a única instituição capaz de manter as muitas etnias do país unidas, e não economizam violência nesse propósito”, diz Marie Lall, professora de educação e estudos do Sul da Ásia da Universidade College London. Só no domingo 28, ao menos dezoito pessoas morreram e 200 ficaram feridas quando a polícia usou armas de fogo e gás lacrimogêneo contra os manifestantes que se escondiam atrás de escudos e barricadas improvisadas. Só na quarta 3, ao menos 38 pessoas morreram e 100 ficaram feridas quando a polícia usou armas de fogo e gás lacrimogêneo contra os manifestantes que se escondiam atrás de escudos e barricadas improvisadas. Estima-se que mais de 1 000 birmaneses tenham sido presos em fevereiro, entre eles políticos, ativistas, jornalistas e profissionais liberais em geral — os da saúde organizaram uma greve como forma de protesto.
Os jovens que tomaram as ruas nas últimas semanas, convocados pelas redes sociais e sem lideranças evidentes, replicam os atos pró-democracia disseminados em sua vizinhança. Na Tailândia, desde o ano passado um poderoso movimento popular investe contra o autoritário primeiro-ministro militar Prayuth Chan-ocha e a monarquia local. Tailandeses e birmaneses adotaram como símbolo de rebeldia o gesto de três dedos erguidos da distopia Jogos Vorazes, adaptada para o cinema em 2012. Para divulgar os protestos nas redes e burlar o bloqueio imposto pelos militares ao Facebook, Instagram e Twitter, os manifestantes de Mianmar pegaram emprestado os protocolos de segurança e as tecnologias de criptografia desenvolvidas pelos ativistas de Hong Kong, há dois anos resistindo à hegemonia da China continental. Também utilizaram chips de celular tailandeses para mandar mensagens e fazer ligações sem que fossem rastreados. Essa união informal de forças deu origem ao movimento on-line Milk Tea Alliance (Aliança Chá com Leite), em referência à bebida típica da região. Nas ditaduras do Oriente, as xícaras estão transbordando.
Publicado em VEJA de 10 de março de 2021, edição nº 2728