Finda a Segunda Guerra Mundial e expostos os horrores do Holocausto, a então Alemanha Ocidental, dividida pelo Muro de Berlim, desenhou uma política rigorosa de desnazificação baseada na Erinnerungskultur, a “cultura da lembrança”, que desde então permeou todas as esferas da vida pública para garantir que a barbárie jamais fosse esquecida, nem se repetisse. Funcionou por bastante tempo, mas duas eleições no domingo, 1º de setembro, deixaram à mostra o desgaste do cordão sanitário contra a extrema direita, ao se consolidar uma inédita vitória em um Parlamento estadual da Alternativa para a Alemanha (AfD), partido vigiado continuamente pela polícia por seu extremismo e relativização do regime nazista. Além de obter o maior lote de votos — 32,8% — na Turíngia, a AfD ficou em segundo lugar na Saxônia, mero 1,3 ponto atrás da União Democrata-Cristã, de centro-direita. “Histórico” para o controvertido líder partidário Björn Höcke, “amargo” para o chanceler Olaf Scholz, o resultado abre um precedente dos mais perigosos, e convém atenção.
Em rápida reação, os principais partidos do país se comprometeram a criar um “firewall” contra a AfD, emprestando o termo para bloqueio na informática. A ideia é impedir coalizões com a legenda e fechar brechas por onde seus membros possam ser indicados para cargos no governo, evitando assim uma repetição da ascensão dos nazistas, que chegaram ao poder pelas urnas em 1932 e foram integrados à política por meio de alianças — tendo justamente a Turíngia como ponto de partida. Ainda que não participem diretamente das decisões, os radicais de agora abocanharam assentos suficientes, tanto no Parlamento turíngio quanto no da Saxônia, para brecar a votação de leis e a nomeação de juízes. Seu apoio será essencial também para a tomada de decisão sobre questões mais simples, como construir escolas e consertar estradas. As siglas tradicionais podem se ver obrigadas a se aproximar da Aliança Sahra Wagenknecht, esquizofrênico partido “esquerdista conservador” criado em janeiro, que ficou em terceiro lugar nas eleições de ambos os estados e cujas posturas populistas são, em certos pontos, praticamente indistinguíveis das da AfD.
Organizada em 2013 com uma bandeira eurocética, tirando partido da indignação popular com o resgate oferecido pelo governo alemão às economias da União Europeia dobradas por uma crise econômica, a AfD, como a maioria das siglas de direita radical em expansão no continente, foi saindo aos poucos das beiradas do espectro político. Em 2015, quando o país recebeu mais de 1 milhão de desesperados que fugiam de conflitos na Síria e no Afeganistão, a legenda deu vazão a um discurso virulentamente xenofóbico. Também inflou a vela do negacionismo climático, opondo-se a regulações malvistas pelos agricultores, e firmou posição contra a ajuda militar à Ucrânia, que se reflete no bolso dos alemães.
Esse discurso ressoou com força especial nos cinco estados que compunham a antiga Alemanha Oriental — embora o Muro de Berlim tenha caído em 1989, o descompasso entre os dois lados antes da unificação fez persistir uma divisão tácita, em que o oeste é mais industrializado e tem média salarial 15% maior. “Os cidadãos do leste se sentem abandonados pelas elites políticas. O populismo da AfD encontrou solo fértil no ressentimento”, diz Johannes Kiess, filósofo da Universidade de Leipzig, resumindo um sentimento de causa e efeito que assola vários países da Europa.
A ala mais radical da AfD (sim, ela existe) não perde chance de tentar driblar as restrições em vigor na Alemanha contra símbolos e preceitos nazistas. Em janeiro, foi revelado que membros da cúpula do partido discutiam em segredo a implementação de um plano de deportação em massa de imigrantes, inclusive os que já haviam obtido cidadania alemã — uma perspectiva de limpeza étnica de gelar a espinha. Björn Höcke, que lidera o partido na Turíngia e dá voz à sua ala mais extremista, foi multado em 13 000 euros em maio por usar em campanha o “Tudo pela Alemanha”, lema das SA, as tropas de choque nazistas. Ele e outros colegas também costumam chamar oponentes políticos de “corruptores do povo”, expressão usada por Hitler, e se orgulham de a AfD ser apelidada de Tat-Elite, ou “elite de ação”, o nome alternativo das SS, a polícia de Hitler. Embora o partido não desfile abertamente símbolos do Terceiro Reich, seus apoiadores levam às manifestações bandeiras com suásticas, águias imperiais e os números 18 e 88 — correspondentes às ordens das letras do alfabeto, o primeiro se refere a “AH”, de Adolf Hitler, e o segundo, a “HH”, de Heil Hitler.
Tentativas de proibir a ação da AfD não foram em frente. “Banir um partido é difícil, porque desafia a própria ordem democrática”, explica Vinícius Bivar, historiador da Universidade Freie. Tirando proveito dessa linha tênue, a legenda prevê bons resultados em Brandemburgo, outro estado do leste que vai às urnas no dia 22 de setembro, e está em segundo lugar nas pesquisas nacionais, atrás só dos democratas-cristãos (o SPD de Scholz, em baixa, teve desempenho fraquíssimo na Turíngia e Saxônia). Ao que tudo indica, o cordão sanitário contra o nazismo chegará esgarçado à eleição geral do ano que vem. Preocupa.
Publicado em VEJA de 6 de setembro de 2024, edição nº 2909