Abram alas para o czar: Putin não quer arredar pé do poder
Enquanto ajuda a campanha de Trump, o homem forte de Moscou encaminha um projeto de lei para continuar mandando pelo tempo que bem entender
Os serviços de espionagem dos Estados Unidos convocaram há poucos dias uma reunião com assessores da Casa Branca para comunicar que serviços russos especializados em fake news e desinformação já atuam em pleno vapor na internet para alavancar a campanha de reeleição de Donald Trump. Por que a Rússia se dá a esse trabalho? Porque Vladimir Putin, o homem forte de Moscou há duas décadas, pensa alto, muito alto. No plano externo, ter no comando dos Estados Unidos um “admirador” — é notória a apreciação de Trump por governantes autoritários — se encaixa na estratégia de fortalecer seu protagonismo na geopolítica mundial. Dentro da Rússia, a ambição do ex-agente da KGB é ainda maior: no fim de janeiro, a Duma, como é chamado o Parlamento russo, aprovou as linhas gerais de um projeto de reforma constitucional que tem em seu DNA os meios para Putin continuar mandando na Rússia quando sua Presidência terminar, em 2024 — e se tornar uma versão século XXI dos czares do passado.
Um ponto crucial do projeto é transferir para a Duma não apenas a aprovação do primeiro-ministro indicado pelo presidente, mas de toda a equipe ministerial, o que ampliará consideravelmente a influência do Parlamento — e do premiê — no regime de governo, hoje nitidamente presidencialista. Em 2024, Putin não poderá mais ser reeleito. Porém, com a mudança prevista, terá a chance de manobrar para virar primeiro-ministro — o mais poderoso que a Rússia já teve — enquanto controlar o Legislativo. E controle não lhe falta: o plano foi aprovado por 432 dos 450 deputados. “O poder russo funciona assim: é ilimitado, corrompe e ninguém o confronta por medo da perseguição que virá”, resume a russa Anastasia Edel, professora de história e cultura na Universidade da Califórnia em Berkeley. Em outro ponto do projeto do tipo pegadinha, Putin quer incluir na Constituição o Conselho de Estado, um órgão secundário de ligação entre governos regionais e o Kremlin. Reforçando o conselho e assumindo sua presidência, dizem os especialistas, ele pode se tornar uma eminência parda nos bastidores indefinidamente, sem se preocupar com detalhes como votos e aprovação popular.
Ao longo das últimas duas décadas, Putin consolidou-se no leme de um país acostumado há séculos a governantes vitalícios, como foram os czares da dinastia dos Romanov e os dirigentes do Politburo na era soviética. Segundo Matthew Rojansky, especialista em Rússia do Wilson Center, de Washington, o presidente neutralizou de vez os oligarcas que tomaram conta do Estado, no vácuo de poder que se seguiu ao desmoronamento final da URSS, ao prender, em 2003, o magnata do petróleo Mikhail Khodorkovsky, acusado de corrupção e fraude fiscal. Paralelamente, tratou de cooptar os demais centros de influência — militares, elites regionais e a Igreja Ortodoxa. “Ele dá aos aliados o que eles querem, e eles lhe dão sua lealdade”, analisa Rojansky.
Na economia, Putin apostou na exploração dos recursos naturais, fazendo dos gasodutos russos provedores essenciais da Europa. O produto interno bruto (PIB) aumentou de 91,6 bilhões de dólares, em 1992, para 1,6 trilhão, no ano passado. No mesmo período, o PIB per capita saltou de 617 dólares para 11 200 dólares. A onda de progresso refluiu nos últimos anos, afetada pela queda nos preços das matériasprimas em geral e do petróleo em particular. Atento à insatisfação social, o projeto de reforma constitucional de Putin embute investimentos de 28 bilhões de dólares em iniciativas sociais.
Ao mesmo tempo, Putin age para conservar, na medida do possível, a preponderância da Rússia na política global. Além de pôr seu exército de hackers para interferir na eleição americana (o que já havia feito, com sucesso, em 2016) e em outras ao redor do mundo, ele invadiu a Ucrânia e anexou a Crimeia, tornou-se avalista de Nicolás Maduro, na Venezuela, aproximou-se do Irã, assumiu a função de mediador na guerra civil da Síria (onde apoia o governo) e flerta com a China, país com o qual a Rússia divide uma fronteira de 3 645 quilômetros. “Rússia e China estão mais próximas do que nunca, mas é uma amizade de interesse, sujeita a mudanças bruscas conforme soprem os ventos da geopolítica”, diz Rojansky. Se tudo correr como o planejado por ele, o czar terá muito tempo para cimentar seu ambicioso lugar na história.
Publicado em VEJA de 4 de março de 2020, edição nº 2676