Impérios coloniais subjugaram povos e países durante séculos, sem pejo nem arrependimento — pelo contrário, a supremacia em terras distantes temperou sua história com vastas doses de orgulho e ufanismo. Agora, enfim, a conta começa a ser cobrada. Impulsionados pela força do movimento antirracismo nos Estados Unidos, os africanos e seus descendentes — de longe a fatia da humanidade mais explorada e maltratada pelos poderosos de outrora — estão no centro de uma campanha mundial para retalhar as celebradas glórias do colonialismo, exigir claros e inequívocos pedidos de desculpas e, no seu extremo mais radical, reivindicar compensação para as vítimas. O mais recente ato nesse sentido partiu da Jamaica: o governo anunciou estar tomando as últimas providências para encaminhar ao Reino Unido um pedido formal de reparação financeira.
A medida beneficiaria os descendentes de escravos forçados a trabalhar nas plantações de cana-de-açúcar, banana e outros rendosos cultivos nos 179 anos em que os britânicos dominaram a ilha e a escravidão esteve em vigor. “Nossos ancestrais foram retirados de casa e sofreram atrocidades indescritíveis para realizar trabalhos forçados em benefício do império britânico. Já passou da hora de corrigir essa situação”, declarou Olivia Grange, ministra dos Esportes, Juventude e Cultura, ao anunciar a petição. Grange não citou valores, mas o parlamentar Mike Henry, autor da petição, calcula o total da compensação em 10 bilhões de libras — segundo ele, “a soma, em valores atuais, com que o Reino Unido indenizou os donos de escravos na época da abolição”.
Dos cerca de 12,5 milhões de africanos capturados e forçados a trabalhar nas monoculturas do Caribe e das Américas, 600 000 desembarcaram na Jamaica. Quando eles foram libertos, o governo britânico, para indenizar seus donos, precisou levantar um empréstimo de tamanha proporção que o último pagamento só foi feito em 2015. Até o miserável Haiti, separado da França por uma rebelião de escravos, foi reconhecido como país apenas depois de concordar em pagar o equivalente a 20 bilhões de dólares em reparação — quantia que levou 122 anos para quitar. “A dívida britânica para com o povo da Jamaica é inquestionável. Não há como não apoiar o pedido, que visa a recompensar a labuta de nossos antepassados e honrar sua memória”, ressalta Frank Phipps, membro do Conselho Nacional Jamaicano para a Reparação. Já o alto-comissário britânico para a Jamaica, Asif Ahmad, não vê futuro para o pleito de reparação, visto que “as pessoas diretamente afetadas não estão mais aqui”.
A compensação financeira dos descendentes de escravos também faz parte do plano de ação da Comunidade do Caribe (Caricom), organização de quinze países da região que, em 2013, criou uma comissão para tratar do assunto. No âmbito do reconhecimento de barbaridades cometidas pelas potências coloniais, a Alemanha reconheceu oficialmente em maio sua “responsabilidade moral e histórica” pelo massacre sistemático dos povos nama e hereró na Namíbia, entre 1904 e 1908. O ministro das Relações Exteriores alemão Heiko Maas pediu desculpas e anunciou a concessão de 1,1 bilhão de euros para projetos de saúde e capacitação das populações afetadas. Horas antes, o presidente francês Emmanuel Macron reconhecera o papel do país no genocídio dos tutsis pelos hutus em Ruanda em 1994. A França “não foi cúmplice”, mas deixou que “por tempo demais prevalecesse o silêncio em vez da apuração da verdade”, disse.
A Bélgica ainda refuta em admitir os desatinos cometidos pelo rei Leopoldo no que é hoje a República Democrática do Congo, mas estátuas do soberano são frequentemente pichadas e derrubadas no país. Em Portugal, chegou-se a propor recentemente a retirada do famoso Marco dos Descobrimentos, por lembrar excessos cometidos nas colônias africanas. Nos Estados Unidos, Evanston, um subúrbio ao norte de Chicago, anunciou em março um primeiro pacote de reparação pelas injustiças contra negros: vai distribuir 400 000 dólares a quem comprove morar ou descender de quem morava lá entre 1919 e 1969 e foi prejudicado na busca por moradia. Calcula-se que cada família candidata vá receber 25 000 dólares, destinados a comprar e reformar casas, e a prefeitura pretende distribuir 10 milhões de dólares ao longo de dez anos, financiados pelo imposto sobre a recém-autorizada venda de maconha. “Reparação é a resposta legal mais apropriada para as práticas históricas que levaram às condições atuais da população negra”, afirma Robin Rue Simmons, vereadora que propôs a medida. Essa e outras iniciativas ainda são uma gota d’água no oceano de crueldade e desigualdade que compõe o legado da escravidão. Mas já é alguma coisa.
Publicado em VEJA de 11 de agosto de 2021, edição nº 2750