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África do Sul: conheça os brancos que vivem na miséria

Eles se tornam quase imperceptíveis em contraste com mais de 25 milhões de negros que compõem as favelas sul-africanas

Por Vanessa da Rocha, da Cidade do Cabo
Atualizado em 10 dez 2018, 09h25 - Publicado em 26 jun 2017, 13h29

Famílias que dependem exclusivamente de doações para viver fazem fila para receber mantimentos. As mãos que entregam os produtos são negras e as que recebem a ajuda, brancas. A  cena é emblemática por se tratar de um país composto majoritariamente por negros subjugados durante décadas pelos brancos no regime do apartheid. E também vai na contramão do senso comum, que idealiza a África do Sul como um país quase exclusivamente negro e pobre com alguns guetos brancos de riqueza.

A situação sugere que existem várias nuances nessa compreensão, pois não é à toa que Nelson Mandela apelidou o país de nação arco-íris quando quis simbolizar a paz entre as diversas etnias sul-africanas, uma expressão que pegou e hoje é sinônimo dos ideais democráticos conquistados na África do Sul pós-apartheid.

Dos mais de 55 milhões de sul-africanos, 8% são brancos. Eles são Afrikaners, descendentes de holandeses, alemães, franceses e britânicos que migraram para o país a partir do século XVII. São conhecidos por desfrutar de um conforto financeiro adquirido no colonialismo e reforçado no regime segregacionista. Dentro dessa minoria existe outra minoria, equivalente a menos de 1%, que vive na extrema pobreza.

É um grupo de aproximadamente 40 mil brancos com pouca qualificação profissional e que, por estarem num país com um índice de desemprego na faixa de 26%, não conseguem trabalho. Eles reclamam que viram suas oportunidades serem reduzidas a partir de 1994, quando Nelson Mandela foi eleito e as políticas de emprego e assistência se voltaram para corrigir as atrocidades do passado.

 

 “O Estado do apartheid atribuía grande valor à ideia de que não havia brancos extremamente pobres. Eles colocaram essas pessoas em subúrbios como o John Hofmeyr em Joanesburgo ou Epping Garden Village, em Cape Town. Locais reservados exclusivamente para os brancos pobres”, diz a pesquisadora de identidades sociais, a sul-africana Christi Kruger da Universidade de Witwatersrand.

Hoje eles formam mini-favelas em terrenos ocupados ilegalmente. Os amontoados de casebres ocupados por pessoas loiras e de olhos azuis na África chamam a atenção já que o imaginário popular está acostumado a associar os brancos à riqueza por questões históricas. Eles vivem na mesma pobreza de milhões de negros, só que a deles é 600 vezes menor. A pobreza branca é tão pequena no país que falar sobre o assunto gera desconforto para a população num sentimento subjetivo de injustiça com os negros.

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Por dentro de uma favela de brancos

Enquanto a maior favela negra, Soweto, em Johanesburgo, tem mais de 1 milhão de habitantes, uma das maiores comunidades pobres brancas, em Krugersdorp, cidade vizinha, tem menos de 200 pessoas. As 120 famílias moram num terreno encharcado que eles chamam de Pango, o mesmo que “caverna” em Swazi, uma das 11 línguas oficiais sul-africanas.

O grupo chegou ali em 2015, depois de serem despejados de outra ocupação, onde viviam em barracas. O novo local também é provisório e todos estão cadastrados no programa do governo para receber habitação popular. Mas não há muita expectativa da chegada desse dia. “Por sermos uma gota no oceano, somos ignorados”, diz Irene Van Niekerke , líder do vilarejo.

“Nós não temos plano de moradia, não temos isenção de pagamento de taxas, não temos subsídio para ter acesso a coisas básicas como água e luz. É como se o governo partisse do princípio que todos os brancos são ricos e todos os negros são pobres e por isso só eles devem receber assistência”, completa. Ao todo, o governo estima que existam cerca de 8.000 moradias de brancos em condições precárias.

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As famílias moram em casebres de lata. Não é à toa que as moradias das favelas sul-africanas são chamadas de casas de cachorro. São quadradas, feitas de zinco, não possuem janelas, nem divisórias no interior. Geralmente um colchão no chão representa o quarto, um sofá surrado ou uma cadeira indicam a sala. E a comida, em outro canto, compõe a cozinha. As roupas ficam em trouxas.

Entre quatro e seis pessoas dividem cada casebre. Casal, filhos, parentes. A privacidade é inexistente. Talvez seja por isso que estão sempre pela rua. Olhando para os lados, caminhando sem rumo. “Já temos de passar a noite inteira nesse lugar, por isso procuramos fugir dessa tortura durante o dia”, diz  Stephanie Jansen, que caminha escolhendo onde pisar para não afundar o pé no barro.

Outro morador, Willy Brtzt diz que tudo é mais complicado quando chove. “A água entra, transpassa o metal. Chove na nossa cabeça enquanto dormimos. E não adianta querer colocar balde pra goteira porque chove por todo o lado”, conta enquanto passa um pano úmido pelo corpo no banho do dia.

Ali não há eletricidade. Eles dependem de equipamentos primitivos para esquentar a água e preparar os alimentos que precisam ser consumidos na mesma hora, pois não há refrigeração. Geralmente, cozinham uma vez por dia para poupar a parafina do fogo que leva cerca de 40 minutos para esquentar. A refeição é servida no fim da tarde para que as crianças consigam dormir durante a noite, sem fome.

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O acesso à água é limitado a cinco torneiras instaladas em pontos estratégicos da vila para abastecer as dezenas de famílias. Os banheiros químicos foram uma conquista, até 2015, os moradores faziam as necessidades no mato.

O único benefício recebido é uma bolsa educação para as crianças no valor de 350 rands, o equivalente a 85 reais por mês. Os idosos vivem da aposentadoria no valor de 1350 rands, cerca de 350 reais. Algumas famílias reciclam lixo. Trabalhando todos os dias, de manhã até a noite, inclusive nos finais de semana, é possível ganhar o equivalente a 300 reais por mês.

Mas o trabalho é pesado e só quem tem saúde consegue fazer. “Meu marido sofre de epilepsia e precisou parar, agora não sei o que faremos”, dia Erica Mogeson. Ela planeja intensificar a venda das roupas que recebeu de doação. “Tem uma senhora que passa aí e compra, se ela gosta de alguma no meu corpo tiro na mesma hora e vendo também”, diz. Cada peça é comercializada por valores entre 5 e 8 rands, menos de dois reais. Todo o dinheiro que conseguem é investido em alimentos e velas.

A segurança é uma preocupação constante. O anoitecer é um breu, até as velas são apagadas para evitar incêndios. Drieke Wiese, uma senhora baixinha que mora sozinha no barraco, fica em estado de tensão com o risco de ter o casebre invadido. “A gente ouve barulho de grupos de homens que passam na frente da casa e jogam pedras pra assustar”, conta.

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Traumatizada com dois casos de violência na família, ela sofre de depressão e usa um diário para colocar os sentimentos pra fora. Esse mês completa 10 anos que a mãe dela foi morta ao ter a casa invadida por assaltantes. A filha também morreu. Trêmula e com os olhos arregalados contendo as lágrimas, Wiese enfrenta a dor para contar que a filha se suicidou numa sala do Tribunal. Ela tirou a própria vida enquanto aguardava o julgamento por ter sido flagrada com drogas. “A violência e o descontrole nesse país são inacreditáveis. Como que uma mulher se enforca dentro de um prédio da Justiça, sob custódia”, diz.

Branca ou negra, a pobreza na África do Sul assume os mesmos traços e desafios. A diferença é que morar em casebre para os negros é a regra, para os brancos é exceção. Outra diferença é que depois de décadas de subjugação, os negros tem ações afirmativas como prioridade no mercado de trabalho e em benefícios sociais, que por sua vez, compõem o maior pesadelo dos brancos.

Segundo a diretora da ONG ‘Alívio para as famílias da África do Sul’, Leigh Du Preez, a pobreza branca cresceu depois do apartheid por causa da política de priorizar os negros no mercado de trabalho.

“As crianças brancas nasceram numa democracia livre, depois de 1994, mas elas são rejeitadas por causa da cor da pele. Os pais não conseguem arranjar emprego e essas crianças vivem na pobreza. Elas estão sendo punidas pelo que aconteceu no apartheid“, diz. Outros atribuem a dificuldade dessas famílias à situação da economia.

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“O fator cor de pele não é o mais relevante para eles estarem sem trabalho, eles estão inativos porque o índice de desemprego é alto mesmo e eles não possuem qualificação. Nós temos muitos mais negros desempregados. Está ruim pra eles porque está ruim pra todo mundo, mas na África do Sul é comum colocar a culpa na cor da pele para todos os problemas”, diz o cientista político suíço Thomas Blaser, que se especializou em estudos de identidades sociais na Universidade de Witwatersrand.

 

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