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Anthony Fauci: Governantes, vacinem-se

À frente da força-tarefa americana anti-Covid, um dos mais respeitados cientistas do planeta faz um apelo aos líderes mundiais: “Deem o exemplo”

Oferecimento de Atualizado em 4 jun 2024, 13h58 - Publicado em 23 abr 2021, 06h00
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  • Um dos maiores imunologistas do mundo, o americano Anthony Fauci, 80 anos, virou celebridade como a voz da razão que se interpôs ao discurso de negação das evidências pregado pela Casa Branca de Donald Trump. Em diversas ocasiões, o cientista baixinho e magrinho, fã de meias com estampas divertidas, usou a condição de membro graduado da força-tarefa montada pelo governo na pandemia para desdizer barbaridades proferidas pelo então chefe. Elevado por Joe Biden à posição de seu principal assessor para questões médicas, Fauci, que já serviu a sete presidentes e nos anos 80 foi fundamental para retirar o estigma sobre o HIV, celebra agora a bem-sucedida campanha de vacinação americana, que abrange mais da metade da população adulta — embora ainda enfrente contágio ascendente em alguns estados. Em entrevista a VEJA por telefone, concedida pontualmente às 7 da manhã no horário americano (8 horas em Brasília), ele opinou sobre o descontrole do vírus no Brasil, defendeu o lockdown e disse que o planeta levará cerca de um ano para reaver a normalidade.

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    Os números da pandemia no Brasil seguem entre os mais elevados do mundo. Como reverter a curva com a urgência que a situação exige? Sem dúvida, o cenário no Brasil é de alta gravidade, pois, além do pico de casos, o sistema de saúde está sobrecarregado. Com um território tão grande e tantos estados e municípios envolvidos, o desafio de frear o vírus é ainda mais complexo. Dito isso, não vejo outra saída senão olhar para as boas experiências mundo afora. E elas indicam que a única saída verdadeiramente efetiva até agora foi o lockdown bem-feito, à base de medidas restritivas consistentes, mantendo as pessoas em casa na medida do possível. Essas limitações não precisam ser longas demais, mas duradouras o suficiente para controlar o ápice do surto. Em paralelo, é preciso pisar já no acelerador para vacinar a população.

    Em que países o lockdown se revelou eficiente? Nova Zelândia, Singapura e Coreia do Sul são alguns dos que obtiveram sucesso com um modelo de quarentena bem controlada, uso de máscara muito difundido e uma reabertura cuidadosa. Outro exemplo bastante interessante é o da Austrália, que enfrentava uma perigosa disparada nos casos no segundo semestre de 2020, quando decidiu implantar um lockdown severo que desacelerou a disseminação do vírus em pouco mais de cem dias. Atualmente, o país registra menos de quinze novas infecções por dia, quase todas importadas do exterior.

    A metade da população adulta nos Estados Unidos já recebeu pelo menos uma dose da vacina. Como chegaram a esse patamar? O presidente Joe Biden fez do assunto sua prioridade zero, investindo muito tempo e dinheiro no planejamento da vacinação maciça. Sou testemunha de que a equipe da Casa Branca vem dedicando um esforço extraordinário para organizar a distribuição das doses e garantir que elas cheguem à população de forma fácil e rápida. Os efeitos dessa corrida logo serão sentidos de modo expressivo.

    O que o Brasil, que imunizou até o momento 12% dos adultos, pode fazer para agilizar o passo? Não me sinto à vontade para dizer o que o Brasil deve ou não fazer, já que não conheço o país como as autoridades e os especialistas locais. Para uma campanha desse porte dar certo em qualquer lugar do planeta, é necessário um comprometimento coletivo, dos políticos e da sociedade. Além disso, quanto mais opções de vacinas houver à disposição, maiores as chances de sucesso, inclusive na batalha contra as novas variantes do vírus que estão aparecendo. Os Estados Unidos contam com as doses da Pfizer, da Moderna e da Johnson & Johnson, que foi suspensa temporariamente após relatos de casos de trombose. Já pensou se tivéssemos só ela?

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    “Para uma campanha de imunização desse porte dar certo, os políticos e a sociedade devem estar comprometidos. E quanto mais opções de vacina houver, melhor”

    Assim como nos Estados Unidos, uma parcela dos brasileiros resiste à vacina. Como encorajá-los a ir ao posto de saúde? A experiência mostra de forma cristalina que dar o exemplo faz toda a diferença. Nos Estados Unidos, resolvemos recrutar políticos, atletas, celebridades, religiosos, enfim, personalidades que as pessoas admiram e em quem confiam para tomar a vacina sob os holofotes e chamar a atenção para sua importância. O presidente Biden e a vice Kamala Harris se imunizaram em frente às câmeras. Eu mesmo, sendo um médico conhecido, também participei.

    A iniciativa ajudou? Temos evidências de que um número considerável de cidadãos que se diziam receosos e preferiam esperar mais um tempo para se vacinar mudou de ideia e tomou suas doses. É um ciclo virtuoso: quanto mais pessoas se imunizarem, mais gente se sentirá confiante.

    Atrapalha quando um líder como o presidente Jair Bolsonaro afirma que será o último na fila da imunização? Não dá para mensurar quão prejudicial é a resistência de um chefe de Estado, mas definitivamente essa postura não contribui em nada. As lideranças devem não apenas se vacinar, como ir além: a elas cabe fazer propaganda das vantagens da imunização.

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    Como foi trabalhar com o ex-presidente Trump e ter de contradizê-lo diversas vezes em frente às câmeras? Difícil. Tenho imenso respeito pelo cargo de presidente dos Estados Unidos e pelo que ele representa, portanto não senti nenhum prazer em contradizer Donald Trump em todas essas ocasiões. Mas corrigi-lo foi vital para manter minha própria integridade e transmitir a mensagem correta. Afinal, essa é a missão de um cientista diante da população para a qual trabalha: dizer a verdade com rigor máximo. Por mais penoso que tenha sido, sei que minhas atitudes foram essenciais para chegar aonde queríamos.

    Quais as diferenças entre Trump e Biden no combate à pandemia? Há muitas. Uma delas é que o presidente Biden está absolutamente envolvido com a força-tarefa antivírus e se esforça de maneira visível para ficar ciente de tudo o que está acontecendo. Ele também se empenhou em reunir uma equipe de médicos e cientistas altamente qualificados para aconselhá-lo — e sempre escuta o que têm a dizer. Na campanha presidencial, Biden prometeu que basearia sua política na ciência, e não em anedotas ou teorias falsas. É o que está fazendo.

    Com que frequência o senhor se reúne com o presidente? Pelo menos uma vez por semana, mas tenho reuniões diárias com a Casa Branca. Biden sempre enfatiza seu respeito pela medicina séria e frisa suas grandes preocupações: ver o maior número de pessoas imunizadas em curto espaço de tempo e que as novas variantes do vírus sejam neutralizadas.

    Os Estados Unidos têm um estoque da vacina produzida pela AstraZeneca em parceria com a Universidade de Oxford, que ainda não foi aprovada pelas autoridades locais, enquanto o Brasil e outros enfrentam dificuldades para obter doses. O governo americano pretende doá-las? É verdade que existem vacinas da AstraZeneca aguardando a autorização para uso emergencial da FDA (a agência que regula os medicamentos nos Estados Unidos) e não vamos ministrá-las até sua aprovação. Também não está em nossos planos fazer doações de doses encomendadas para aplicação nacional enquanto todos os cidadãos do país não estejam imunizados. Depois de suprirmos a demanda interna, aí colocaremos o excedente à disposição dos que precisam. Muitas pessoas têm uma impressão equivocada sobre nossos estoques: não possuímos tantas vacinas, mas, sim, a promessa de produção de grandes lotes que ainda não foram entregues.

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    O senhor participou de uma reunião virtual com o ministro da Saúde brasileiro, Marcelo Queiroga. O que saiu desse encontro? Discutimos a continuidade das boas relações Brasil-Estados Unidos na área científica. Mantemos há anos uma colaboração produtiva com instituições brasileiras como a Fiocruz, por meio da qual trocamos conhecimentos em pesquisas sobre o HIV, o zika vírus e, agora, a Covid-19. Esse tipo de laço precisa sempre ser fortalecido em prol do avanço da ciência.

    Países como Israel e o Reino Unido já se organizam para adotar os chamados passaportes da imunidade, documento que permite a quem foi vacinado contra a Covid-19 ou já teve a doença viajar, ir a eventos públicos e até reunir amigos em festas. O senhor considera uma boa ideia? Na minha visão, há benefícios nessa iniciativa, mas também perigos aos quais devemos atentar. Temo duas consequências: que o passaporte acabe por segregar países onde há menos disponibilidade de vacinas e que confira à imunização um caráter obrigatório.

    “Não senti nenhum prazer em contradizer Trump em frente às câmeras, mas corrigi-lo foi vital para manter minha integridade e transmitir a mensagem correta às pessoas”

    Mas o senhor não é um defensor incondicional da vacina? Sim, mas defendo também as liberdades individuais. Não queremos forçar as pessoas a fazer nada, por mais que a imunização seja a melhor solução para vencer a crise que atravessamos. Por essa razão, os Estados Unidos já anunciaram que não exigirão esses passaportes para a entrada de estrangeiros no país quando as fronteiras forem reabertas. Mas acho bastante provável que o setor privado decida aderir ao movimento, pedindo comprovantes de vacinação para acesso a eventos e serviços.

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    Como o senhor acredita que estaremos vivendo daqui a um ano? Com certeza, muito melhor do que agora, mas o ritmo dos avanços, enfatizo, dependerá da capacidade de vacinarmos uma grande quantidade de pessoas o mais rápido que der. A vida deverá começar a voltar ao normal nos Estados Unidos até o final do verão, em agosto deste ano. Nem tudo será como antes da pandemia, claro, mas muitas das atividades que a população deixou de fazer serão retomadas.

    E o que dizer sobre o restante da humanidade? Mundialmente, a volta ao normal vai ser mais gradual, sobretudo nos países em que a vacinação caminha a passos lentos. Acredito que nesses lugares a rotina levará mais um ano para se estabilizar e tudo, ou quase tudo, ser aberto e liberado. A boa notícia é que o consórcio de distribuição de vacinas liderado pela OMS, o Covax, está se mostrando uma iniciativa competente para melhorar o acesso das nações mais pobres às doses e fazemos parte dela. Outro fato que vejo com extremo otimismo é que, mesmo com um foco de resistência aqui, outro ali, a humanidade se dobrou à ciência, o único caminho, afinal, para vencermos esse vírus.

    Publicado em VEJA de 28 de abril de 2021, edição nº 2735

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