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Argentina está longe de se tornar ‘nova Venezuela’; entenda por quê

Bolsonaro tenta influenciar eleição no país vizinho ao atacar rival de Macri, mas pode levar relações com argentinos a momento mais crítico dos últimos anos

Por Julia Braun Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 30 jul 2020, 19h40 - Publicado em 29 ago 2019, 19h43
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  • Em campanha pela reeleição do presidente Mauricio Macri, Jair Bolsonaro alardeia que a Argentina pode se tornar a “nova Venezuela” se o peronista Alberto Fernández, que tem a ex-presidente Cristina Kirchner como vice em sua chapa, ganhar as presidenciais de outubro. Para especialistas, essa possibilidade é improvável, e as declarações do chefe de Estado brasileiro não passam de retórica eleitoral.

    “A Venezuela se tornou um símbolo daquilo que o atual governo não gosta”, diz o professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Oliver Stuenkel. “Mas esses comentários não buscam se basear em evidências claras.”

    As declarações sobre o tema começaram durante a viagem de Jair Bolsonaro a Dallas em maio, para receber o prêmio de personalidade do ano da Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos. Logo após a contundente vitória de Fernández nas eleições primárias por 47% dos votos, inesperados 15 pontos na frente de Macri, o líder brasileiro voltou a insistir que os “bandidos de esquerda” estavam para voltar ao poder.

    “A turma da Cristina Kirchner, que é a mesma da Dilma Rousseff, que é a mesma de [Nicolás] Maduro e [Hugo] Chávez, e Fidel Castro, deram sinal de vida”, disse em um evento no Rio Grande do Sul, na fronteira com a Argentina. “Povo gaúcho, se essa esquerdalha voltar na Argentina, nosso Rio Grande do Sul poderá se tornar um novo estado de Roraima”, acrescentou, referindo-se ao Estado brasileiro que recebeu centenas de milhares de refugiados venezuelanos nos últimos anos.

    Mas Venezuela e Argentina são países extremamente diferentes, com economias e históricos políticos completamente diversos. Além disso, a composição da economia, o índice de inflação, a taxa de desemprego e o grau educação dos ‘hermanos’ ainda são muito melhores do que os deixados pelo chavismo.

    ‘Esquerdalha’

    Para Fausto Spotorno, diretor do Centro de Estudos Econômicos da consultoria Orlando J. Ferreres y Asociados, de Buenos Aires, classificar Alberto Fernández como esquerdista é “uma interpretação política muito simplista”. O peronista Fernández, se eleito, conduzirá uma política econômica mais conservadora do que a adotada por sua vice, Cristina Kirchner, em seus oito anos como presidente.

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    “O peronismo atualmente é uma aliança interna entre três grupos: os kirchneristas, os governadores provinciais peronistas, que não são precisamente de esquerda, e alguns políticos de centro”, explica o economista.

    Fernández foi chefe de gabinete da Presidência da Argentina entre 2003 e 2008, durante todo o mandato de Néstor Kirchner e um ano do primeiro governo de Cristina. Ele rompeu com o kirchnerismo depois de um grande desentendimento entre a administração e o setor agrário, que sofrera com a imposição de impostos sobre as exportações. O episódio gerou uma crise interna e colocou grande parte dos ruralistas contra a presidente. Fernández deixou o governo e não o poupou de duras críticas.

    Se assumir em dezembro a Casa Rosada, o líder da coalizão Frente de Todos deve herdar um país muito distinto do governado por Cristina. A Argentina de hoje atravessa uma crise econômica profunda, com sérias consequências sociais. “Não vejo como ele poderá fazer grandes manobras populistas sem dinheiro”, diz Spotorno, referindo-se aos subsídios sobre os preços das tarifas públicas amplamente disseminados por Kirchner em seu governo.

    Economia

    Reuters
    MISÉRIA - Venezuelanos sem emprego e sem comida: apesar da crise, todos os esforços até agora para destronar Maduro não deram resultado (Meredith Kohut/The New York Times)

    Argentina e Venezuela enfrentam graves crises, que devem perdurar por anos. Entretanto, as razões por trás da decadência de suas economias são muito diferentes, assim como o tempo e os esforços necessários para os dois países saírem do atoleiro.

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    A economia venezuelana é quase totalmente dependente do petróleo – a commoditie responde por 96% das exportações e pela maior parte da arrecadação fiscal. O país, que teve suas estruturas produtivas nacionalizadas e sucateadas durante do governo de Hugo Chávez (1999-2013), precisa importar praticamente tudo que é consumido no país.

    A má gestão da PDVSA, a estatal de petróleo do país, e a queda brusca do preço da commoditie em 2014 só pioraram a recessão. Segundo a Organização das Nações Unidas, a crise humanitária no país já gerou mais de 4 milhões de refugiados. Na área econômica, a Venezuela é quase uma terra arrasada. A Argentina está a anos-luz dessa situação.

    “Já economia argentina produz uma série de commodities, que vão desde a agricultura – com destaque para a soja – passando por minérios, petróleo e gás, além de ter uma base industrial considerada forte regionalmente”, explica o diretor para o Brasil e Cone Sul da consultoria Control Risks, Thomaz Favaro.

    Ainda assim, o país vive um momento muito difícil. Macri herdou um Estado com elevado déficit fiscal, inflação alta, endividado seriamente e à beira da recessão. As causas, segundo especialistas, foram a agenda administração Kirchner, que envolvia o protecionismo, o controle do câmbio, a forte emissão de dinheiro para impulsionar o consumo, a má administração das contas públicas e até a divulgação de indicadores econômicos maquiados.

    Em quase quatro anos de governo, Macri  apostou em uma agenda econômica ortodoxa e impopular, mas não conseguiu sucesso. No ano passado, o país foi socorrido pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), que aportou 57 bilhões de dólares. Ainda assim, a Argentina entrou oficialmente em recessão ao somar dois trimestres seguidos no vermelho no final de 2018.

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    Nesta semana, o governo Macri anunciou um processo de extensão dos prazos de vencimento da dívida com credores nacionais e estrangeiros e renegociação dos prazos de pagamento da ajuda recebida do Fundo. As medidas foram tomadas em um momento de nova turbulência nos mercados, que elevaram a cotação do dólar a 60 pesos e a taxa de risco-país a mais de 2.100 pontos básicos na quarta-feira 28.

    As previsões para o próximo presidente, seja ele Macri ou Fernández, não são boas. Independente da vertente política adotada, analistas concordam que o líder que assumir em dezembro enfrentará grandes dificuldades para estabilizar o câmbio, controlar a inflação, lidar com a falta de confiança dos investidores e quitar a dívida externa, agora em condições a serem negociadas.

    No entanto, especialistas alertam para alguns problemas a mais, que podem ser causados se Fernández adotar políticas protecionistas, muito atrativas em momentos de crise, como fizera Cristina Kirchner. O Mercosul fechou nos últimos dois meses acordos de liberalização comercial com a União Europeia e o EFTA – Noruega, Islândia, Suíça e Liechtenstein.

    “Se, eventualmente, o governo dele decidir reverter alguma das aberturas que foram feitas nos últimos anos, tanto na relação bilateral com o Brasil quanto com o resto do Mercosul, isso pode mudar a equação para o lado brasileiro”, alerta Favaro.

    Democracia

    Além das diferenças econômicas, Venezuela e Argentina estão muito distantes quando se trata de democracia e direitos humanos. O professor da FGV Oliver Stuenkel alerta para a distorção presente na comparação entre  Fernández e Nicolás Maduro, que já foi classificado como ditador pelos Estados Unidos e não teve seu segundo mandato reconhecido pela União Europeia (UE) e mais dezenas de países, dentre os quais o Brasil.

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    “A Venezuela passa por um processo de erosão da democracia há 20 anos, com um grande projeto do chavismo para se manter no poder, perseguir a oposição, prender dissidentes e travar uma guerra contra universidades”, diz Stuenkel. “Isso não acontece na Argentina.”

    No país que viveu sete anos sob uma dura ditadura militar, os traumas persistem e há apreço pelas instituições. As últimas eleições foram limpas e transparentes e há mútuo respeito entre governo e oposição em relação aos resultados a serem obtidos em outubro.

    O mesmo não pode ser dito sobre o regime de Maduro, que anulou os poderes da Assembleia Nacional, em 2015, e os transferiu para uma Constituinte controlada por chavistas. O ex-sindicalista também se elegeu para seu segundo mandato em um pleito no qual  muitas lideranças da oposição foram impedidas de concorrer — os que não estavam presos ou exilados foram proibidos de disputar qualquer cargo. A presença de observadores internacionais independentes também foi vetada.

    Para se manter diante de uma população que enfrenta há anos uma crise humanitária sem precedentes, Maduro conta com o apoio da Força Armada Nacional Bolivariana e seus tentáculos. Seu governo está repleto de oficiais de alta patente, que têm em suas mãos a continuidade ou não de seu poder.

    “Nem o Néstor [Kirchner], nem a Cristina, nem o Fernández têm relação próxima com os militares”, diz Oliver Stuenkel. “Provavelmente, não veremos generais ou outros oficiais na gestão Alberto Fernández, caso ele seja eleito”.

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    Momento ‘crítico’ das relações

    Especialistas alertam para as consequências da retórica do presidente Jair Bolsonaro contra a campanha de Alberto Fernández. Caso os resultados das primárias se repitam e o oposicionista seja, de fato, eleito em outubro, todas as declarações dadas até agora pelo chefe de Estado brasileiro podem reduzir os pontos de diálogo e o espaço de cooperação com seu mais importante aliado na América do Sul.

    “A postura do governo brasileiro indica que as relações entre Brasil e Argentina caminham para seu momento mais críticos dos últimos 30 anos”, diz Thomaz Favaro. “Ainda é cedo para dizer se o conflito será resolvido ou se haverá impacto no Mercosul, mas realmente a perspectiva é de um aumento de tensões significativo”.

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