Uma análise rápida (pero no mucho) da trajetória política e econômica da Argentina nas quatro décadas pós-ditadura militar aponta para a melancólica conclusão de que o país anda, anda e não sai do lugar. O anúncio feito na quarta-feira 28 pelo ministro da Fazenda, Hernán Lacunza, corrobora essa visão. Lacunza anunciou que o governo vai “redefinir os prazos de pagamento” de sua dívida, inclusive do empréstimo de 57 bilhões de dólares que tomou junto ao Fundo Monetário Internacional. Vem aí uma moratória — o nono calote da Argentina em seus credores. O enfraquecido presidente Mauricio Macri, virtual perdedor da eleição do dia 27 de outubro, pode não levar seu mandato até o fim, em dezembro. Nada fora do normal: aconteceu com os outros dois únicos mandatários não peronistas do período democrático, Raúl Alfonsín, em 1983, e Fernando de la Rúa, em 2001. E quem deve pegar a batata quente são os peronistas de sempre.
Argentina, FMI, moratória, peronistas no poder — quem não ouviu esse tango antes? “O círculo se repete porque os argentinos não veem a Argentina real. Nunca deixaram de achar que estão em uma Europa transplantada, mas também há uma Bolívia e um Paraguai por lá”, avalia Marcos Azambuja, ex-embaixador do Brasil em Buenos Aires e conselheiro emérito do Centro Brasileiro de Relações Internacionais. Com a inflação em mais de 50%, o desemprego em 10% e um terço da população na pobreza, os argentinos chegaram às eleições primárias de agosto com sangue nos olhos. E deram ao candidato peronista Alberto Fernández uma inesperada vitória de 15 pontos sobre Macri, vingando-se por ele não ter feito a arrumação prometida na bagunça deixada por Cristina Kirchner, a vice de Fernández. Macri aprovou um pacote de bondades e mudou o ministro da Fazenda. Mas o dólar continuou subindo, a entrada de investimentos cessou e o governo, sem reservas, capitulou. “Entramos em uma nova e mais dura etapa da crise econômica”, diz o cientista político Gustavo Marangoni.
O termo usado por Lacunza foi “reperfilamento” da dívida, o que significa, segundo ele, que só se mexerá nos prazos de pagamento. O adiamento vale para os chamados investidores institucionais, como bancos e seguradoras; pessoas físicas não serão afetadas. No caso do FMI, o “reperfilamento” tem na mira o médio prazo, já que as parcelas do empréstimo só começariam a ser pagas em 2021. O ministro disse que o Fundo não foi pego de surpresa — o governo antecipou a medida para funcionários que estavam em Buenos Aires. Para Matias Spektor, professor de relações internacionais da Fundação Getulio Vargas, um objetivo escondido de Macri foi puxar o tapete de Fernández, mostrando que tem poder e que o jogo eleitoral não acabou. “Fez uma aposta de altíssimo risco”, diz.
É inevitável que o agravamento da crise argentina respingue nos vizinhos, Brasil mais que todos, visto ser a Argentina seu terceiro maior parceiro comercial. “A recessão, que deve se estender pelo ano que vem, terá impacto ainda maior nas exportações. Outro fator negativo é o fracasso de um governo com o qual o presidente Jair Bolsonaro tanto se identificou”, lembra Marangoni. “Os grandes investidores estrangeiros apostam em um pacote, no caso o pacote dos mercados emergentes. Se fugirem em massa do peso, também fugirão do real”, observa Spektor. Eis aí uma boa razão para torcer pelos argentinos.
Publicado em VEJA de 4 de setembro de 2019, edição nº 2650