Criada em 1945 no cenário pós-guerra, a Organização das Nações Unidas cumpriu com o seu papel, dando à sociedade internacional a valiosa contribuição de promover a visão de um mundo mais democrático e justo e comprometendo-se com a busca incessante da paz entre os povos. Empenhou-se pela descolonização, pelo desenvolvimento e, por meio de seus organismos especializados, estimulou a cooperação entre os Estados nas mais diferentes áreas de interesse da humanidade — saúde e educação, ciência e cultura, comércio e indústria, entre tantas outras. Mais recentemente, voltou-se para a proteção do meio ambiente e para o combate às mudanças climáticas. A família da ONU, ampliada pelas instituições de Bretton Woods — Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial —, compõe o mais amplo acervo de normas, políticas e procedimentos internacionais da história moderna. Seu impulso ao direito internacional não tem paralelo. Sem a flexibilização das regras nacionais, que os organismos da ONU ajudaram a implementar, a globalização econômica simplesmente não teria ocorrido e, se tivesse, seria caótica.
Não obstante conquistas inegáveis, subsiste a crítica quanto à sua eficácia. Alguns arguem que lhe falta poder para ser realmente eficiente, sem se lembrar de que a ONU adota sanções legítimas, porque endossadas pela comunidade das nações. Outros, ao contrário, a acusam de exorbitar de suas competências, como seria o caso da Unesco ou mesmo da Organização Mundial do Comércio, por suas engrenagens para a resolução de controvérsias. Muitos a condenam ainda por inoperância, por não ter encontrado saída para as grandes tragédias humanitárias.
A organização internacional mais longeva de que se tem notícia foi o fruto de uma ourivesaria política forjada ao longo de décadas. Ela concilia a representatividade com o equilíbrio de poder. As grandes potências jamais aceitariam participar de uma instituição em que a acentuada disparidade de peso econômico e de recursos políticos não fosse levada em conta. Essa é justamente a razão de ser do Conselho de Segurança, no qual têm assento as nações mais poderosas. Por isso mesmo, é tão difícil reformá-lo. Mas os países mais pobres ou de menor poder relativo tampouco aceitariam participar de uma instituição, que se propõe a ser multilateral e universal, sem que ela lhes oferecesse espaço para manifestar sua voz e ser ouvidos.
No decorrer do tempo, as críticas à ONU foram se multiplicando. E as reivindicações também deram um salto. Mas o impulso militante e contestatório do Grupo dos 77 (uma coalizão de nações em desenvolvimento), por exemplo, foi-se atenuando, pouco a pouco, assim como sua própria relevância. Na Organização Mundial de Comércio, em que a decisão em princípio deveria ser tomada segundo a regra de um voto por país, o que funciona, na realidade, é um processo de formação de consensos, no qual, até certo ponto, as preocupações e aspirações legítimas de cada um dos membros acabam sendo consideradas. Olhando em perspectiva, a ONU soube atualizar-se e incorporar demandas novas e angustiantes da sociedade internacional, como as questões dos refugiados, da imigração e da mudança climática, desafios realmente difíceis de solucionar, mas que começam a ser regulados, após rodadas de negociação por vezes longas, porém sem a imposição da força.
“O Brasil não pode, sob o pretexto das ideias confusas do globalismo, deixar de contribuir para o fortalecimento da ONU”
É certo que a organização poderia fazer mais. Mas os que assim pensam se esquecem de que a ONU não é um ente autônomo, que paira acima da vontade de seus Estados-membros. Ao contrário, ela é apenas o palco da grande política mundial. Expressa e decide o que os seus membros querem, sobretudo os mais poderosos. Se existem limites congênitos para a sua ação, uma visão realista, e talvez mais justa, reconheceria que é crucial contar com uma estrutura capaz de atenuar divergências ou promover a negociação, antes que os conflitos virem confrontos graves, por vezes militares, e difíceis de conter. Há alguns anos, ganhou tração a iniciativa de vários países para uma reforma da ONU, de modo a ajustá-la às transformações e ameaças do mundo globalizado. No caso do Brasil, a demanda por uma reformulação estava centrada na ampliação do Conselho de Segurança e em uma maior democratização do processo decisório, demandas que não lograram transpor as diversas instâncias da organização.
As crises simultâneas por que estamos passando tornaram inevitável a reforma das regras internacionais. O mundo precisa de mais multilateralismo, em vez de menos. Não há como combater uma pandemia que já contaminou mais de 30 milhões de pessoas em quase 200 países e provocou tragédias humanas e expressivas perdas econômicas sem uma estreita colaboração entre os sistemas nacionais de saúde, sob a égide da OMS. Da mesma forma, a redução das emissões de gás de efeito estufa não ocorrerá de modo efetivo enquanto os esforços de alguns beneficiem os que fizeram pouco ou nada. Só uma disciplina multilateral trará equidade. É uma ilusão supor que a recuperação da economia mundial será alcançada apenas pelo receituário do equilíbrio fiscal, sem levar em consideração a necessidade de um esforço conjugado para reduzir a desigualdade e conter o protecionismo.
A emergência da China está provocando deslocamentos tectônicos, que não podem ser entendidos em toda a sua dimensão somente à luz da chamada guerra comercial ou da disputa tecnológica. Elas são apenas a ponta visível de um iceberg profundo. Como diz com propriedade Emmanuel Macron, presidente da França, o conflito hegemônico entre as duas superpotências não deve contaminar ou prejudicar o esforço coletivo em trabalhar nos foros multilaterais em prol de bens comuns, tais como a oferta de boa saúde e educação, o combate à mudança climática e os direitos humanos. As eleições presidenciais nos Estados Unidos tendem a lançar luzes novas sobre a reforma na ONU, que não pode ser considerada apenas sob o ângulo de implicações orçamentárias ou da crescente presença da China. O Brasil participou dos debates que levaram à proposta de uma Liga das Nações, ao fim da I Guerra Mundial. Teve papel ativo na fundação da ONU, em 1945. Possui credenciais e a pretensão legítima de ser um relevante ator mundial. Mas não pode, sob o pretexto das ideias confusas e obscuras do globalismo, furtar-se a dar uma contribuição construtiva para o fortalecimento das Nações Unidas.
* Sérgio Amaral, ex-ministro de Desenvolvimento e Comércio Exterior e ex-embaixador do Brasil em Washington
Publicado em VEJA de 21 de outubro de 2020, edição nº 2709