As propostas dos países que começam a deixar o confinamento
Ideias de retomada econômica contemplam processo controlado, por atividade, região ou até idade
O menos pior dos mundos, hoje, está nos países pequenos, organizados, ricos e com vítimas do novo coronavírus contadas às centenas, não às dezenas de milhares. Noruega, Dinamarca e Áustria estão nesse grupo privilegiado. Israel, com sua capacidade organizacional e tecnológica única, propiciada pelo estado de alerta permanente, tem um plano de quatro fases para sair da paralisação e reiniciar gradualmente o processo de salvação da economia. Donald Trump está para anunciar a “decisão mais difícil da minha vida”. A França tem de esperar até 11 de maio para os primeiros passos — e o primeiro dos primeiros é a reabertura progressiva de creches e escolas de 1º grau.
O pior dos mundos é aquele em que nem o isolamento social funcionou para distribuir num prazo mais alongado a massa de doentes que despenca sobre os hospitais porque a economia informal não para, por desespero, e a formal continua paralisada.
Quem não quer ficar preso nesse círculo infernal tem de olhar para o que os outros estão fazendo, analisar o que pode ser aproveitado nas condições específicas de cada país ou região, adaptar-se rapidamente. Em termos bem simplificados, escolher entre o mundo darwiniano, em que alguns têm mais chances e outros menos, e o hobbesiano, o da guerra de todos contra todos. Em qualquer das hipóteses, haverá perdedores — essa é a realidade. Mas uns podem perder mais do que outros.
A pandemia foi, está sendo e será terrível, mas já dá para ser dimensionada, globalmente, em centenas de milhares de mortes. Não chegará, pelo menos nessa primeira fase, aos números estupefacientes da gripe espanhola, em 1918, com seus 50 milhões ou mais de vítimas. O desastre antecipado na África ou na Índia não está acontecendo, um milagre, a mercadoria mais em falta no momento. “O pior já passou”, suspirou Andrew Cuomo, detentor do pior recorde do mundo como governador de Nova York, o caldeirão demoníaco onde se misturaram todos os elementos conhecidos — e vários ainda desconhecidos — para produzir mais de 10 000 mortes, pela contagem mais aproximada nesta última semana.
Todo mundo mais ou menos já entendeu que é preciso “tolerar uma contração muito grande da atividade econômica até que a disseminação das infecções caia significativamente”, sob risco de desgraça econômica maior ainda (um estudo entre economistas do IGM da Universidade de Chicago deu 88% de concordância). Mas essa contração tem de ser imediatamente enfrentada. “Planos são inúteis, mas planejar é essencial”, disse um sujeito que entendia de enfrentar crises, Dwight Eisenhower, o general de cinco estrelas que comandou os aliados e depois foi presidente dos Estados Unidos.
Todos os planos, é claro, são para ontem. Já existe até um nome, em inglês, para os especialistas mais envolvidos nas estratégias de retomada econômica: são os exiteers, os “saidistas”. O fato é que todos os países hoje estão olhando para a saída, em ritmos diferentes. E todos os governos, tanto os normais quanto os anormais, estão divididos entre equipes econômicas, que querem sair mais cedo, e responsáveis pela saúde pública, com a mão no freio. As tensões, para cada um dos lados, são titânicas por motivos autoexplicáveis. Mas todo mundo vai ter de sair.
Como? Uma das estratégias em discussão é a da alternância regional: algumas regiões, cidades ou bairros ficam isolados, enquanto outros têm um respiro. O isolamento regional também pode ser aliado a um sistema de detecção, através da contabilização de casos, direta ou via aplicativos. É a chamada “política de quarentena geograficamente diferenciada”. A proposta faz parte de um plano apresentado por Ran Balicer, especialista em saúde pública da equipe de controle de epidemias do Ministério da Saúde de Israel. A alternância regional, em termos mais amplos, com uma subdivisão nacional em quatro regiões, foi assim proposta pelo professor israelense: “Imaginem que a rádio anuncie que as áreas A, B e D podem ir trabalhar, enquanto a área C continua confinada”. Os casos voltam a disparar? “A área A, por exemplo, volta às quatro semanas de confinamento.”
Outra proposta criativa, de uma equipe do Instituto Weizman de Ciências: o esquema de quatro por dez. Todo mundo — sem sintomas, na faixa etária de menos risco — trabalha durante quatro dias e para dez, dando tempo para aflorarem os casos de contaminação, isolá-los e fazer o tratamento possível. Ou diminuir o número de contágios. O matemático Baruch Barzel propõe a mais simples, e rápida, segundo ele, saída da crise: metade do país trabalha durante uma semana, a outra metade na semana seguinte. “Mesmo que continuemos a viver como antes, sem o distanciamento social, e mesmo que 15% da população não acate as regras, mataremos a doença em seis semanas”, disse ele.
Pensar é bom, inclusive em alternativas heterodoxas, não motivo de ofensa. O epidemiologista alemão Alexander Kekulé, professor de microbiologia e virologia, não tem medo de provocações. Sua proposta entra, sem vacilar, no campo minado da imunidade coletiva. “As pessoas abaixo de 50 anos têm pouca probabilidade de morrer. Temos de deixar que sejam infectadas para que desenvolvam a imunidade.” Mas morrem, certo? “Sei que pode parecer falta de compaixão, mas temos de conviver com isso. A imunidade de grupo é a única opção no momento. Não podemos esperar até ter uma vacina. Nossos países e nossa cultura não resistirão.” Coisa de alemão maluco? Kekulé desfruta a vantagem de ter sido um profeta do coronavírus que desde janeiro alertava sobre o perigo desenhado no horizonte planetário. Ele acha que a Alemanha demorou muito a reagir — imagine só.
Em todas as propostas, das mais exóticas às mais convencionais, há uma unanimidade: os idosos continuam isolados. É uma realidade inescapável. Atendê-los em suas “ilhas”, provendo necessidades materiais e emocionais, é uma alternativa em países mais organizados. Exceto, naturalmente, os que já tiveram o vírus (ou receberem o mesmo equipamento de alta segurança fornecido a médicos, o EPI, segundo o professor Kekulé, que não para de ter ideias diferentes). Uma organização especializada em pandemias de gripe propôs um regime de seis meses de alternância geográfica ao Sage, o grupo de assessoria científica do governo britânico.
A ideia do “passaporte imunológico” para permitir a volta ao trabalho dos adultos jovens que já têm anticorpos surgiu e sumiu, pelo menos temporariamente. Chegou a ser admitida, como hipótese, por Anthony Fauci, o “Mandetta americano”, que assessora e eventualmente contraria Donald Trump (“não vai ser demitido”, “é um sujeito maravilhoso” e “gosto de controvérsias” foram algumas das declarações do presidente americano que levaram toda a oposição a garantir que Fauci, na linha de frente aos 79 anos, estava por um fio).
Entre as desvantagens do certificado imunológico que reabriria as portas do mundo do trabalho a seus portadores está a possibilidade de que haveria uma “corrida ao vírus”. Pessoas jovens e com bom condicionamento físico (ou mesmo sem ele, mas desesperadas, como tantos outros milhões e milhões) tentariam ser infectadas contando ter sintomas suportáveis e desenvolver os anticorpos mais desejados do mundo.
Outro efeito mais inesperado ainda: e se houver quantidades significativas de pessoas que não querem sair do isolamento, mesmo se puderem? Aquelas que, enquanto todos os outros só pensam em acabar com essa desgraça logo, têm medo de deixar a proteção da casa e voltar a reentrar no mundo? O terror emocional instalado em escala planetária fez um membro do governo britânico comentar, anonimamente, que as autoridades ficaram perplexas ao ver o grau de acatamento das regras de isolamento, comparativamente flexíveis, instauradas na Inglaterra. Esperavam uma adesão de, no máximo, 50% da população. Passou de 70%. A doença do príncipe Charles, inicialmente, e depois a grave deterioração do primeiro-ministro Boris Johnson ajudaram a aumentar o senso de alarme nacional. O sentimento de medo e desproteção diante de uma força avassaladoramente maligna já levou à criação de um movimento de mães dinamarquesas que são contra a reabertura das escolas, no dia 15. O governo italiano liberou a reabertura de papelarias e lojas de roupas infantis, tratadas como reatores nucleares, mas algumas regiões prefeririam ficar de fora. Na Espanha, o fim da “hibernação” — a paralisação total das atividades econômicas, exceto as de alimentação e remédios, que vigorou durante duas semanas, no ápice da mortandade — provocou reclamações de trabalhadores. Todos são providos de máscaras e de material de higiene, mas as queixas decorrem especialmente da proximidade física no chão de fábrica e outras plantas industriais. A distância de segurança, tão impensável há pouco mais de um mês, em especial nos países de cultura de proximidade latina, foi violentamente introjetada.
Com uma constelação de problemas quase inimaginável, está todo mundo entrando na fila da saída. Aos poucos, com a cautela necessária, como se fôssemos um planeta todo habitado por gente chamada Yuri Gagarin (o primeiro humano lançado ao espaço), Alexei Leonov (o primeiro a sair de um módulo e contemplar o universo sem barreiras) ou Neil Armstrong (o primeiro a andar na Lua).
Sem ideias heterodoxas, o conselho nacional que assessora o governo (interino, encrencado) de Israel propôs um plano arroz com feijão: quatro etapas divididas em duas semanas cada uma, no total de dois meses. Primeiro, reabrem os setores com peso econômico, fábricas e indústrias tecnológicas, com 1 milhão de pessoas voltando ao trabalho. O setor público recomeça com 50% da capacidade. Tudo com máscaras, luvas e distanciamento. Escolas, em regime bem gradual. Aumento correspondente dos transportes públicos. Não deu repique? Na fase dois, reabrem os demais setores, privados e públicos. As escolas primárias voltam todas, facilitando o retorno de mães e pais. Na fase três, reabrem restaurantes, hotéis, cafés, todos com o devido distanciamento. Aglomerações continuam proibidas. Fase quatro: shoppings e cinemas voltam a funcionar.
Shoppings e cinemas? Lembra quando existia isso?
Publicado em VEJA de 22 de abril de 2020, edição nº 2683