No mês passado, um sargento da Força Aérea dos Estados Unidos foi preso, acusado pelos assassinatos de um xerife da Califórnia e de um policial federal, durante um protesto do movimento Black Lives Matter que descambou para a violência, na cidade de Oakland. Poucos dias antes, três homens também pararam atrás das grades por tentarem levar rifles e explosivos a uma manifestação contra a morte de George Floyd, em Las Vegas. Essas e outras 11 prisões e três mortes, sem aparente ligação, estão conectadas pela ação de um grupo que se identifica por um look bizarro: camisas havaianas de estampa floral, colete à prova de balas e fuzis de assalto. O uniforme é a principal característica do “Boogaloo”, um movimento organizado e perigoso que entrou no radar das autoridades americanas.
Não espere muita coerência. A não ser pela inusitada vestimenta, o grupo mais parece uma colcha de retalhos. Mistura libertários anti-governo, anti-polícia e defensores do porte de armas. O direito assegurado na Constituição americana pela Segunda Emenda, aliás, é sua principal bandeira. Muitos dos integrantes são militares ativos ou reformados e todos se preparam para uma suposta segunda guerra civil americana, que eclodiria como uma reação à tentativa do Estado – autoritária na visão dos “boogaloos” – em desarmar a população.
Sem líder, o grupo é mais um fruto da discussão sobre armas da plataforma 4chan, na internet. O site, espécie de reduto da extrema direita nas redes, já havia sido responsável pelo surgimento do coletivo de hackers Anonymous – conhecidos pelo uso da máscara do filme “V de Vingança” – e do grupo neofascista identificado como alt-right.
O nome é uma referência a um jogo de videogame de 1984, chamado “Breakin 2: Electric Boogaloo”. Em 2012, os usuários do 4chan começaram a se referir à possibilidade de uma “Guerra Civil 2: Electric Boogaloo”.
Como outros movimentos extremistas de direita, o Boogaloo é produto de uma geração de homens, geralmente brancos, saudosos das décadas anteriores. Eles costumam extravasar suas angústias por meio de memes, carregados de um humor sombrio, misógino e preconceituoso.
Em meio ao delírio sobre a guerra civil, compartilham pelas redes sociais imagens nostálgicas, com qualidade semelhante a das fitas VHS, em que retratam a “existência ideal Boogaloo”: uma família tradicional da classe média americana, encabeçada por um patriarca.
O uso da camisa havaiana surgiu como uma brincadeira em muitos desses memes. Mas também pode ser encarado como uma maneira de chamar atenção da mídia, repetindo a técnica já utilizada por outros grupos extremistas de criar vestimentas e rituais curiosos para serem “decodificados” ao público pela imprensa.
Na tentativa de escamotear suas ações na internet, os integrantes passaram a chamar a camisa de “Big Luau”, já que, em inglês, a sílaba “loo” e “luau” têm sonoridade parecida. A referência à festa típica do Havaí também é, em parte, uma piada sobre matar “porcos” – gíria para policiais – para um churrasco à beira da praia.
Adeptos do movimento também costumam se chamar de “Boojahidin”, em homenagem aos Mujahidin do Afeganistão, que travaram uma guerra de guerrilha contra a ocupação soviética nos anos 1980.
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Clique e AssinePara além das estampas florais
O movimento explodiu após o desastroso comício de direita em Charlottesville, Virgínia, em 2017. Em protesto contra a remoção de uma estátua de um general confederado, manifestantes carregando rifles semiautomáticos, suásticas, bandeiras antissemitas e propagandas da chapa Donald Trump/Mike Pence entraram em confronto com um grupo antifascista.
O comício terminou com um dos manifestantes de direita avançando contra uma multidão com um carro. Ele matou uma pessoa e feriu outras 20. Depois disso, memes sobre a segunda guerra civil se saíram do 4chan e passaram a ser distribuídos em vários grupos do Facebook e do Reddit.
Mas o Boogaloo também mobiliza jovens à esquerda, com o discurso de que o governo enriqueceu alguns privilegiados às custas do povo. Seus integrantes compartilham uma crença anti-corporativista de que o Estado traiu a confiança do público, fortalecendo a polícia para perpetuar um status quo injusto.
A resposta do governo Trump à pandemia de coronavírus e sua promessa de levar o Exército às cidades americanas para conter os protestos anti-racistas de junho fortaleceram essa conexão. Há até quem compare o movimento com a campanha da esquerda para reduzir o financiamento da polícia.
Mas não se engane: alguns membros são supremacistas brancos e defendem que a guerra civil deve ser uma guerra racial, que restauraria os valores perdidos dos amados anos dourados do século 20, quando negros eram segregados no sul dos Estados Unidos.
Em fevereiro deste ano, a Universidade Rutgers, de Nova Jersey, gerou um relatório destinado à polícia detalhando o movimento Sua conclusão: o Boogaloo é um movimento terrorista e deve ser vigiado.
Diante desses e outros apelos contra o discurso de ódio, o Facebook anunciou, no fim de junho, que considerava o movimento perigoso, comparando-o ao Estado Islâmico. Não está claro quantas pessoas se consideram afiliadas à ideologia, mas a plataforma removeu mais de 100 grupos Boogaloo, totalizando 72.000 membros.
Mesmo com as sanções, os boogaloos seguem espalhados e escondidos em todos os cantos da internet. No início de julho, um vídeo no TikTok de um homem posando com seu rifle e sua indefectível camisa havaiana se tornou viral. A mensagem: “Chamada: quem é um garoto boogaloo no Colorado? Vendo quem são os amigos”. Mais uma cena no desconcertante desfile de calamidades de 2020.