Boris Johnson ladrou e mordeu, mas seus problemas estão no começo
Primeiro-ministro apostou alto e obteve evidente mandato popular para levar em frente o divórcio entre o Reino Unido e a União Europeia
Acabou a novela (ou parece que acabou). Na sexta-feira 13, terminada a apuração da eleição antecipada no Reino Unido, o Partido Conservador do primeiro-ministro Boris Johnson comemorou, feliz e aliviado, a vitória acachapante que lhe deu 365 das 650 cadeiras do Parlamento. Ao derrotado Partido Trabalhista couberam 203, seu pior desempenho desde 1935. A nova composição pode enfim destravar o Brexit, o divórcio com a União Europeia aprovado desde 2016 e emperrado por entraves políticos — e não só por causa da folgada maioria conservadora de 39 votos. Ao contrário da legislatura que se encerra, na qual uma parcela dos tories, como os conservadores são chamados, ignorava a fidelidade partidária e votava consistentemente contra a saída, os eleitos agora são, quase todos, da linha pró-Brexit. “Recebemos um poderoso mandato para implementar a separação”, celebrou Johnson no discurso de vitória.
O governo deve reapresentar até o fim de dezembro o acordo de separação acertado com a Comissão Europeia e rejeitado pelo Parlamento em setembro e em outubro. Antes dele, um pacto parecidíssimo, negociado pela antecessora de Boris, Theresa May, fora recusado três vezes. A votação de agora deve resultar em aprovação — e das ruas se elevará simbolicamente o “ufa!” dos britânicos cansados de picuinhas parlamentares. Se tudo correr dentro do cronograma, o Reino Unido sairá da UE em 31 de janeiro de 2020. Enterra-se aí — de novo, se tudo der certo — o espectro do caos de uma saída sem nenhum acordo e começa um período de transição de doze meses (que Boris já fala em encurtar) para acertar os ponteiros da separação.
Se a eleição destravou o Brexit, também criou outros problemas. O Partido Trabalhista sai arrasado, e a culpa maior recai sobre o líder Jeremy Corbyn, socialista da velha guarda, dado a tiradas antissemitas e intragável para boa parte dos eleitores. A Escócia, onde a maioria da população é contra o Brexit, entregou 48 da sua cota de 59 cadeiras no Parlamento ao separatista Partido Nacional Escocês (SNP), e a primeira-ministra Nicola Sturgeon avisou que vai convocar um novo plebiscito sobre a permanência no reino de Elizabeth II. No referendo anterior, em 2014, antes portanto do Brexit, o “fico” ganhou por pouco: 55%. Sem falar na questão insolúvel da fronteira que, por força de tratados anteriores, não pode existir entre a Irlanda e a Irlanda do Norte — mas vai ter de existir, já que o país localizado ao sul continuará na UE e a outra ponta é britânica. “Esta eleição pode marcar o início do esfacelamento do Reino Unido”, alerta o embaixador Marcos Azambuja, do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri).
Por mais que Boris Johnson celebre o Brexit como o passaporte do Reino Unido para uma vida melhor, a perspectiva é de, pelo menos no primeiro momento, sérios problemas econômicos. Segundo o National Institute of Economic and Social Research, de Londres, o PIB britânico já é 2,9% menor do que seria se o país tivesse votado por permanecer na UE. Feito o Brexit, de cara os serviços bancários se tornarão mais lentos, afetando os negócios da City de Londres. Compras on-line sofrerão impacto nos preços e as entregas serão mais demoradas. As ligações para a Europa (assim dizem os britânicos, como se não fizessem parte dela) ficarão mais caras. As companhias aéreas do Reino Unido terão de cortar seus voos entre cidades do continente. Até o Eurostar, trem de alta velocidade que faz o transporte de carga e passageiros sob o Canal da Mancha, terá a velocidade reduzida por causa da maior burocracia na fronteira. Conforme o Financial Times, ao menos 15 000 pessoas vão enfrentar filas diárias caso a França institua um controle rígido de passaportes.
Desde a crise mundial de 2009, quando o PIB britânico despencou 4,1%, o Reino Unido patina na trilha do crescimento. O tombo impôs um duro ajuste fiscal que se arrasta há uma década e resultou no corte de 30 bilhões de libras nos serviços públicos. O National Health Service (NHS), sistema de saúde que já foi exemplar, acumula problemas típicos de nações atrasadas, como falta de médicos, equipamentos ultrapassados e longas filas de espera. Cerca de 4 milhões de súditos da rainha têm renda mensal inferior a 1 100 libras, o que os coloca na linha de pobreza, pelos padrões britânicos. Boris Johnson vai precisar encarar tudo isso — com todos os vizinhos torcendo contra.
Publicado em VEJA de 25 de dezembro de 2019, edição nº 2666