Campanha em modo 100% digital: nos EUA, uma eleição como nunca se viu
O Partido Democrata desfila seus figurões e confirma a indicação de Biden para a Presidência — tudo pelo telão, na primeira convenção digital da história
Já faz tempo que as convenções partidárias para formalizar candidatos à Presidência dos Estados Unidos são uma espécie de show interminável e sem suspense — quando começa, todo mundo já sabe o nome do escolhido. Do roteiro constam, em geral, discursos e mais discursos entremeados de uma espécie de chamada onde delegados de todo o país anunciam sua preferência com uma rápida mensagem pessoal — tudo num nível muito superior ao que é realizado por aqui. Desta vez, porém, a pandemia, sempre ela, impôs uma novidade: na segunda-feira 17, o Partido Democrata deu início a quatro noites de espetáculo inteiramente digital, sem plateia, com tempos rigidamente cronometrados e, para compensar de certa forma a falta de calor humano, com vários vídeos bem produzidos sobre a família dos candidatos ungidos — Joe Biden para presidente, Kamala Harris para vice — e as principais bandeiras eleitorais deste ano.
Enquanto as plataformas eletrônicas e as TVs transmitiam a convenção-Zoom, a cidade de Milwaukee, a maior de Wisconsin — estado crucial na disputa de votos de 3 de novembro —, lamentava ter deixado de ser a sede da convenção e de, com isso , receber estimados 50 000 visitantes. “Ficamos com a convenção fantasma”, lamentou um comerciante. No cenário digital, um telão serviu de palco para o desfile de estrelas do partido, com um tema único — abaixo Donald Trump — e tempos alocados conforme o grau de importância nesta eleição.
Bill Clinton falou cinco minutos; Bernie Sanders, o segundo pré-candidato mais cotado e preferido dos jovens, teve oito, recomendando o voto em Biden. Michelle Obama eletrizou a primeira noite, com um discurso sem meias-palavras: “Vou ser sincera e clara, Donald Trump é o presidente errado para nosso país”, decretou. Hillary Clinton, a candidata derrotada de quatro anos atrás, falou ao vivo. Barack Obama, de quem o atual candidato foi vice e é hoje a voz mais respeitada do partido, foi a atração principal da penúltima noite e elevou a temperatura. Acusou Trump de conduzir um “reality show” na Casa Branca e “beneficiar a ele e seus amigos”. Biden apareceu em casa, agradecendo a indicação, e voltaria ao ar na quinta-feira 20 para o primeiro discurso oficial como candidato.
Fiel à posição da Casa Branca de minimizar os efeitos da pandemia, a convenção republicana, marcada para os dias 24 a 27 de agosto, terá uma parcela dos delegados presente em Charlotte, na Carolina do Norte. Mas também aí haverá transmissões digitais de várias cidades e o próprio Trump fará seu discurso triunfal a distância. As convenções marcam a largada final da campanha e a chance de Trump virar a seu favor a vantagem de 8 pontos que Biden tem nas pesquisas. “Elas dão partida no período mais definitivo antes da eleição”, diz Robert Yoon, professor da Universidade de Michigan e veterano de conferências partidárias. Três debates estão marcados, um no fim de setembro e dois em outubro, todos dependentes das condições da pandemia — em princípio, serão sem plateia e com os dois rivais bem separados um do outro. Ciente da tendência de Biden a gaguejar e ter lapsos de memória, Trump, showman nato, quis acrescentar um quarto embate no início de setembro, mas não foi atendido.
Outra novidade da eleição de novembro deve ser o maior número de votos pelo correio, para evitar aglomerações e o contato com as urnas. Trata-se de um sistema consolidado nos Estados Unidos: em 2016, um em cada quatro eleitores votou sem sair de casa. Apesar da conveniência, especialmente agora, o uso do serviço para esse fim tem sido sistematicamente condenado por Trump, que afirma, sem nenhuma comprovação, ser ele um facilitador de fraudes — para seus detratores, o presidente se arma com antecedência de um argumento para desacreditar o resultado caso Biden saia vencedor. O próprio Trump chegou a admitir corte no orçamento do serviço postal, em meio a denúncias de que seu diretor, Louis DeJoy, fã e financiador do candidato republicano, estava reduzindo pessoal, recolhendo caixas nas ruas e paralisando equipamentos com o intuito de atrapalhar o voto pelo correio. Diante da grita geral, a direção anunciou que vai adiar seu plano de reformas para depois da eleição. No ano em que o mundo mudou, o distanciamento substitui o célebre corpo a corpo na corrida final para a Casa Branca.
Publicado em VEJA de 26 de agosto de 2020, edição nº 2701