Era a humanidade a caminho do precipício. Naquele 22 de outubro de 1962, o presidente americano John Kennedy fez um pronunciamento pela televisão para anunciar que os soviéticos haviam instalado mísseis nucleares em Cuba, a 150 quilômetros da Flórida. A reação teria de ser imediata, e então o governo dos Estados Unidos fez decolar de suas bases na Europa um grupo de jatos B-52 com bombas e proa para Moscou. A hecatombe nuclear parecia a caminho — Kennedy chegou a dizer que havia chance de um para três de confronto bélico. O impasse durou treze dias, ao fim dos quais as duas superpotências inimigas conseguiram contornar os chamados às armas por meio da diplomacia. Era o apogeu da Guerra Fria, que a rigor seria encerrada, com pompa e circunstância, apenas após a queda do Muro de Berlim, em novembro de 1989, e o desmantelamento definitivo da União Soviética, dois anos depois.
Parecia desfecho adequado à tese do filósofo nipo-americano Francis Fukuyama, que decretara um pouco antes o “fim da história”. Com a vitória da democracia liberal representada pelos Estados Unidos contra o absolutismo soviético, a civilização alcançara, enfim, um estágio superior de liberdade e conforto — não era o modelo perfeito, mas o mais adequado. O mundo estava fadado a ser democrático. Fukuyama, porém, não intuiu outros movimentos que poderiam atropelar a sensatez: o fosso interminável entre ricos e pobres, sem dúvida, mas também o conflito de civilizações entre o Ocidente e o Oriente, alimentado pela intolerância fundamentalista — e os atentados de 11 de setembro de 2001, acima de qualquer outro evento, mostraram que a história estaria longe de terminar.
Houve, contudo, apesar do terrorismo e de combates bélicos episódicos, a calmaria possível — distante do risco multiplicado pela engrenagem da Guerra Fria. O quebra-cabeça global tinha as peças encaixadas, em equilíbrio delicado. Nos últimos anos, surtos de autoritarismo e populismo parecem ter desequilibrado o jogo. Há as frequentes boutades dos ditadores de plantão, como o da Coreia do Norte. Há a invasão da Ucrânia pela Rússia de Putin. Houve os ataques do Hamas contra Israel e o revide agressivo. E, na semana passada, deu-se um novo passo a acelerar o rastilho de pólvora da bomba — a agressão do Irã, por meio de drones, ao território israelense Não se trata, agora, de prever o pior dos tempos, a guerra espraiada para além do Oriente Médio. Mas convém ter em mente o novo tabuleiro. Há, tal qual nos anos 1960, países na órbita dos Estados Unidos, como a França e a Alemanha, e outros de mãos dadas com a Rússia, a exemplo da Índia e da Síria. E não se deve esquecer o papel vital da China, possível fiel da balança, com interesses comerciais dos dois lados. Vive-se a paz quente — preocupante, sem dúvida, mas sem o drama daquele outubro de 1962. Vale lembrar o alerta do responsável pelas relações exteriores da União Europeia, Josep Borrell: “Muitas vezes, ninguém quer a guerra, mas não deixam de prepará-la”.
Publicado em VEJA de 19 de abril de 2024, edição nº 2889