Na Roma antiga, quando um general vencia uma batalha, percorria a cidade em triunfo, saudado pelos cidadãos e acompanhado de um escravo que sussurrava em seu ouvido uma expressão em latim: memento mori, “Lembra-te de que morrerás”. Era um conselho de origem religiosa, dístico afeito a mostrar ao poderoso de plantão o valor da humildade, que tudo passa, ou, na linha mais popular, “hoje você está por cima, e amanhã, não”. É conselho que caberia ao presidente Lula — especialmente quando trata de dar opiniões a respeito da ordem internacional. O Brasil é um país de destaque, é peça do tabuleiro mundial, tem economia forte, e não haveria nenhum problema em ter um presidente da República atento aos passos da diplomacia global. Falta-lhe, contudo, o comedimento que se espera de verdadeiros líderes.
Aguardava-se, com a eleição de Lula — especialmente no trato do zelo pelo ambiente, do qual a Amazônia é o grande símbolo —, que o Brasil voltasse a ter o relevo subtraído durante os quatro anos de Jair Bolsonaro. De fato, em relação ao movimento ambientalista, houve avanço. Na política, contudo, os tropeços se sucedem. Na semana passada, em uma entrevista a jornalistas em Adis Abeba, na Etiópia, Lula pronunciou uma frase infeliz, para dizer o mínimo, ao ser indagado sobre a guerra no Oriente Médio: “O que está acontecendo na Faixa de Gaza e com o povo palestino não existe em nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu — quando Hitler resolveu matar os judeus”. A reação da comunidade judaica foi imediata, dada a inaceitável comparação entre o Holocausto nazista e a irresponsável matança israelense no pequeno pedaço de terra palestino. O governo do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu considerou o brasileiro persona non grata, em reação aguda e mercurial. Abriu-se, sem necessidade, uma crise diplomática acalorada e deslocada.
Um olhar mais cuidadoso e um pouco mais de modéstia — além de bons conselhos, porque memento mori, lembre-se — afastariam Lula da declaração desastrosa e ofensiva. O Holocausto foi uma decisão de genocídio intencional, destinado a dizimar uma população em escala industrial. A agressão das tropas de Israel contra Gaza, deflagrada depois de um ataque terrorista, é terrível e exige imediata interrupção — mas em nada se compara ao terror imposto por Adolf Hitler. Lula não chegou a negar o Holocausto e tampouco foi antissemita — mas sua boutade, sim, pode deflagrar movimentos antissemitas, ao fazer pressupor que os israelenses de hoje, ou os judeus que apoiam Israel, são como os nazistas de ontem. Não é verdade.
Lembre-se, ainda, que o presidente brasileiro tem usado réguas distintas para ameaças semelhantes à democracia. A velocidade com que ele condenou o regime autocrático de Netanyahu não se viu com governantes amigos. Ele nada disse a respeito dos atentados aos direitos humanos cometidos por Nicolás Maduro, da Venezuela. Instado a comentar a morte de Alexei Navalny, encarcerado por Vladimir Putin, contemporizou: “Para que acusar alguém?”, pedindo tempo até que os resultados das investigações legistas sejam divulgados. A postura seletiva de Lula é ruim para ele, não há dúvida, mas também para o Brasil, país reconhecido por suas posições equilibradas nos gabinetes de negociações ocupados pelo Itamaraty. Caberia um pedido de desculpas, sinônimo de grandeza. Ainda há tempo, mas é preciso humildade para isso. E, infelizmente, o presidente não tem demonstrado essa característica.
Publicado em VEJA de 23 de fevereiro de 2024, edição nº 2881