Carta ao Leitor: O dragão se reinventa
A mesma política chinesa que aponta firme para o progresso científico, em áreas como a economia verde, ainda vive envolta em incômodas sombras

Em sua monumental obra sobre a trajetória da China, da formação do império aos tempos atuais, o escritor Michael Wood assinala que é uma tolice subestimar a capacidade daquele povo. Essa resiliência assombrosa foi testada inúmeras vezes ao longo da história. Exemplo disso foi quando a nação teve de renascer dos escombros, em 1556, depois de assolada pelo terremoto mais mortífero já visto até hoje, com estimativa de mais de 800 000 vítimas. Outras catástrofes monumentais se deram com as enchentes do Rio Amarelo e os horrores do período conhecido como Grande Fome (1958-1961), quando pelo menos 15 milhões de habitantes pereceram de inanição, segundo as estatísticas mais conservadoras. O país não apenas se recuperou de todos esses dramas como também se livrou nas últimas décadas da imagem de pátria das cópias de produtos estrangeiros, da mão de obra barata e da emissão desenfreada de poluentes.
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Esse salto gigantesco pode ser verificado por diferentes ângulos. Na economia, seu PIB deve ultrapassar o dos Estados Unidos em duas décadas, de acordo com algumas projeções. O país da imitação, quem diria, passou a ser copiado de uns tempos para cá, pois se tornou referência mundial em inovação. Em 2024, pela primeira vez, o número de patentes internacionais registradas por inventores da China superou o dos Estados Unidos. Aparentemente, não há muralhas erguidas na forma de barreiras econômicas capazes de travar esse avanço. A política americana de dificultar a venda de chips para lá não impediu o surgimento do DeepSeek, a startup de inteligência artificial que ameaça solapar o domínio de ferramentas como o ChatGPT. Os avanços impressionantes se repetem em áreas diversas, inclusive em setores que pareciam improváveis, como o do entretenimento e o da sustentabilidade. Sim, o dragão asiático quer virar a página também nesse campo, com destaque para o investimento em energias renováveis. Resultado: lidera hoje a produção global de painéis solares, de turbinas eólicas e de veículos elétricos.
O jornalista de VEJA Ernesto Neves, autor de reportagem da edição, esteve em Chongqing, um dos epicentros dessa transformação. “É um labirinto vertical onde o futuro já chegou: arranha-céus exibem jardins suspensos, monotrilhos atravessam prédios, robôs dividem espaço com bosques e ônibus são comandados pela inteligência artificial”, conta ele. Coberta por poluição tóxica no passado, a cidade se converteu no símbolo da China moderna, em que tecnologia, sustentabilidade e ambição se entrelaçam. De polo fabril a vitrine high-tech, ela encarna a ambição de um país que não quer mais apenas seguir tendências, mas, sim, defini-las.
É verdade que pairam sempre dúvidas sobre a que custo o país vem obtendo todo esse progresso, tendo em vista a falta de transparência do governo ditatorial de Pequim. Imprensa e redes sociais sofrem bloqueios severos sempre que o governo se incomoda com a veiculação de informações críticas. Protestos nas ruas são violentamente reprimidos. O próprio DeepSeek, exibido como o grande marco tecnológico do país, tem ferramentas de censura a qualquer pergunta sensível sobre o regime. A mesma política de Estado que aponta firme para o progresso científico, em áreas como a chamada economia verde, ainda vive envolta em incômodas sombras.
Publicado em VEJA de 11 de julho de 2025, edição nº 2952